domingo, 2 de julho de 2017

Xeque -mate no assassino

Por Mario Henrique Simonsen
Jornal do Brasil - Idéias Livros
Sábado, 29-10-1994
(Dos Arquivos de Jeová Mesquita, hoje pertencente a Fernando Melo)


Num romance erudito e eletrizante, um escritor espanhol arma trama à altura de Umberto Eco


O quadro flamengo, do escritor espanhol Arturo Pérez-Reverte, é um excitante romance de mistério, especialmente recomendado aos aficionados de xadrez. Pérez-Reverte segue os caminhos trilhados por Umberto Eco em O nome da rosa e em O pêndulo de Foucault, mas agora a trama não se desenvolve a partir da filosofia escolástica ou da física clássica, mas em função d uma partida de xadrez enigmática.

Julia, uma restauradora, recebe, para exame,um quadro do pintor flamengo Pieter Van Huys, que está para ser leiloado, um óleo sobre madeira pintado em 1471. O motivo principal é constituído por dois cavaleiros de idade mediana, aparência nobre, um de cada lado de um tabuleiro de xadrez em que se desenrola uma partida, o jogador com as peças pretas empunhando um cavalo branco recém-capturado. E segundo plano, uma dama vestida de preto lê um livro posto sobre o regaço. O exame em raios X mostra que o jogador com as pelas brancas é Roger d`Arras, o das peças pretas Ferdinando Altenhoff, a dama sendo Beatriz de Borgonha, mulher de Altenhoff. Revela ainda que o pintor escrevera uma mensagem interrogativa para depois encobri-la com suas próprias tintas, quis necavit equitem, ou seja, "quem matou o cavaleiro"?

Intrigada, a restauradora procura desvendar o mistério do quadro. Sua primeira surpresa é descobrir que Roger d´Arras havia sido assassinado em  1469, ou seja, dois anos antes de a tela ser pintada pelo mestre flamengo. Segundo relatos da época havia suspeitas, não confirmadas, de que o mandante do crime tivesse sido o próprio Altenhoff. Isso é o suficiente para que Julia levante a hipótese de que o pinto quisesse, com o quadro, fornecer a pista para a solução do enigma. Com efeito, em linguagem enxadrística quis necavit equitem se traduziria por "quem tomou o cavalo". E, pela posição do tabuleiro, o cavalo branco havia sido capturado pelas peças pretas.

Julia, que pouco entende de xadrez, recorre a Cesar, seu antigo tutor e antiquário, a Álvaro, historiador da arte e seu ex-amante, e finalmente consegue a assessoria de  Muñoz, funcionário público e enxadrista amador. Este é um jogador de xadrez exótico, profundo conhecedor da teoria, mas com horror a dar xeque-mate nos adversários. O trabalho de Muñoz é reconstituir a partida, da posição estampada na tela de Van Huys para trás, de modo a descobrir que peça preta capturou o cavalo branco, num chamado exercício de análise retroativa.

Só que, enquanto Muñoz caminha para a solução do problema, Álvaro é misteriosamente assassinado. Ao mesmo tempo, Julia começa a receber bilhetes de um enxadrista anônimo que se propõe a continuar o jogo a partir da posição indicada por Van Huys, ou seja, o mistério do quadro flamengo adquire impulso próprio, indo além da própria tela.

Pérez-Reverte desenvolve o livro com extrema elegância, mantendo sempre o leitor sob tensão, como é mister num romance de mistério. Habilmente o autor combina dois mundos, o das artes plásticas e o do xadrez; e sutilmente encadeia dois enigmas, o de Van Huys e o posterior ao quadro, usando a teoria do xadrez para resolvê-los, embora a solução do primeiro seja mais retilínea do que a do segundo.

Valem duas observações a respeito da tradução brasileira. Primeiro, os diálogos consagram a mistura do pronome pessoal "você" com os pronome oblíquos da segunda pessoa do singular, no estilo "você vai que eu te sigo", Não é um português castiço, mas um brasilianismo tolerável, que não chega soar mal aos ouvidos. Pior seria a língua do "tu vai", oriunda da dificuldade dos imigrantes italianos em pronunciar o plural com S. Segundo , e aí o problema é mais relevante, o xadrez não é um passatempo gastronômico. No vernáculo enxadrístico as peças não se "comem" umas as outras, mas "capturam", ou simplesmente "tomam". E a tradução de O quadro flamengo é um festival de comilança: há tanto "peão como peão", "bispo come dama", "cavalo come torre" e até "dama come rei", que o leitor corre o risco de morrer de indigestão. Sugere-se um jargão enxadrístico menos voraz na próxima edição.

Nenhum comentário:

Postar um comentário