quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Desventuras de um capivara - O Jogador e o Capivara

Peço licença ao escritor Robert Louis Stevenson, que em 1886 publicou o célebre livro “O Médico e o Monstro”, para contar uma versão diferente daquela história. A trama é bem conhecida e gira em torno do Dr. Jekyll, um médico que, cansado de sua vida pacata e querendo dar uns “rolês” sem peso na consciência, cria um “remedinho” que o transforma no Sr. Hyde, uma figura sem quaisquer escrúpulos. Acontece que o médico perde o controle sobre essas transformações, e a única forma de manter o Sr. Hyde sob rédeas curtas era tomando a poção que ele criara. Até que um dia, o remédio acaba... Não vou dar “spoiler”. Leia o livro.

Para contar os “trágicos” eventos que motivaram essa postagem, é necessário fazer uma breve contextualização.

Os torneios presenciais estão voltando, embora de uma forma ainda tímida, pois a pandemia continua a fazer mais e mais vítimas. Os organizadores vêm limitando a quantidade de vagas e adotando rigorosos protocolos.

Assim, tive a oportunidade de participar do Floripa Chess Open 2021, realizado agora em janeiro. Como sempre, a organização foi impecável e os dirigentes e árbitros foram muito exigentes em relação ao cumprimento das medidas de segurança.

Depois de um início claudicante, com uma vitória, uma derrota e um empate; encaixei uma sequência de três vitórias e fui parar na mesa 5, que fica localizada no palco do salão de jogos. Ora, aquilo lá é território de onças pintadas! O que um capivara poderia fazer naquele lugar? Para estimular sua imaginação, segue uma sugestiva foto.


Fui emparceirado com o Mestre Internacional Sturt Raven, dos EUA, uma onça pintada com 2481 de rating FIDE. Uma diferença de 400 pontos em relação ao meu! Com a alma leve, sem maiores compromissos com resultados e honrado em ter alcançando tão importante lugar, eu disse a meu companheiro de quarto que subiria ao palco cantando aquela música de Gilberto Gil: “Subo neste palco, minha alma cheira a talco, como bumbum de bebê...”. Cantei não. Fiquei com vergonha.


O autor enfrentando do Mestre Internacional Sturt Raven.


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Sturt Raven - Marcello Urquiza

Floripa Chess Open 2021


Link da partida:

https://share.chessbase.com/SharedGames/share/?p=pyUbWKgMV0p03tNk0CGpyJ/9EHPEfF5ThMCgx7b5zrfVKCbz1/NG7QYExAg0kLKs

Em que pese a enorme diferença de força, eu joguei bem e ainda lutava por um empate no final da partida. Veja o diagrama abaixo.

Jogam as negras

Dr. Fritz diz que as brancas têm vantagem. De fato, com um peão a mais, o par de bispos e o rei em ótima posição, a vantagem é clara, mas o doutor evitou afirmar que ela era decisiva. Às pretas resta a esperança de poder sacrificar uma de suas peças por um peão, na hipótese de não existirem outros no tabuleiro.

Então, um plano defensivo seria o de reduzir a quantidade de peões no tabuleiro. A partida seguiu:

45.... h4 46.f5+

As brancas evitam uma liquidação maior. Em compensação, reduzem a mobilidade de sua estrutura, já que a casa “e5” está momentaneamente bloqueada e o eventual avanço “e5” implicará em mais uma troca.

Ambos os jogadores já estavam apurados no tempo, embora minha situação fosse mais crítica.

Uma possível continuação seria 46.... Rf7 47.gxh4 gxh4 48.h3 Ch5, apesar da evidente vantagem, as brancas ainda teriam de trabalhar muito para concretizá-la.

Então aconteceu algo que só consigo explicar com a história do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde. Eu joguei:

46.... Rh5??

O que o meu rei foi fazer aí? O peão “f” ficou abandonado à própria sorte, o que praticamente define o resultado da partida.

Estava apelando para passar um peão nesse setor? Se era isso, então teria de estar respaldado por uma linha concreta, que não havia. Nem tempo para calcular eu tinha.

A partida seguiu:

47. Bd4 hxg3 48.hxg3 Bd8 49.Rd6 Rg4 50.Rd7 Ba5 51. Cf6 Ch5 52.Be7 Rg3

Já atordoado, entreguei um segundo peão e, após mais alguns lances, abandonei.

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Como a história do Dr. Jekyll pode explicar o que aconteceu? Considere que o que controlava as transformações no Sr. Hyde era o remédio que o médico havia desenvolvido. Quando ele acabou, a transformação que se seguisse seria permanente.

Fazendo um paralelo, o tempo, neste caso, era a poção que controlava a manifestação do capivara. Quando o tempo acabou, o capivara assumiu o controle e jogou um lance estapafúrdio. Uma lambança brutal.

Pois é, o capivara tarda, mas não falha.

Alguém conhece um remédio que controle esse bicho?