segunda-feira, 27 de abril de 2020

O Voo do Capivara – E capivara também voa?

Por Marcello Urquiza


Estamos iniciando uma nova seção, a qual receberá o simpático nome de “O Voo do Capivara”.

Portanto, essa não será uma história de desventura. Afinal de contas, capivara também é gente! E há dias em que ele voa. Em homenagem aos voos dos capivaras, publico a foto abaixo, que achei  na Internet. Vejam como é  leve e gracioso.




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Isto posto, e para que você saiba do que se trata, vou me apressar e dar um “spoiler”.

A partida abaixo transcrita me trouxe enorme satisfação. Num jogo que definiria um dos finalistas de um torneio, enfrentei um fortíssimo adversário e, ainda, tive de fazer 15 movimentos em apenas 5 minutos. Apesar disso e das complicações propostas por meu oponente, mantive o sangue frio e consegui executá-los sem maiores deslizes.

E você, caro leitor? Já jogou alguma partida que lhe porporcionou essa satisfação? Quer compartilhá-la conosco?

Pronto! Agora que você já está sabendo de tudo, mande um e-mail para marcellourquiza@bol.com.br. Iremos publicar sua partida preferida.

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Em 1978, recebi um convite do MF Marcos Asfora, então um dos mais fortes enxadristas do país, para jogar um match. Recém-chegado à capital pernambucana, aquele convite me deixou muito honrado. Jogamos 4 partidas. Consegui empatar uma delas.

Posteriormente, tivemos mais três encontros, sendo dois presenciais e um por correspondência. A partida abaixo foi jogada na 4ª rodada do I Torneio Cidade do Natal, em 1984. O vencedor iria disputar o título na última rodada.

Marcello Urquiza  x  Marco Asfora
Natal – 03/11/1984

1.e4  Cc6

Nem sei o nome que se dá a essa defesa. Mas a razão pela qual Marquinho jogou esse inusitado lance merece um exame. Em tempo, não estranhem a intimidade, pois era assim que o chamávamos naquela época.

Durante algum tempo, adotei a Abertura Orangotango (1.b4). Tinha um motivo para isso: a preguiça. Não conseguia estudar aberturas. Então, entendia que, se jogasse algo desconhecido, eu e meu adversário estaríamos em condições de igualdade, no que diz respeito à preperação teórica. Um ano antes, jogando pelo Torneio Poupança Bandepe, enfrentei Asfora usando essa abertura e, pasmem, ganhei!

Primeira hipótese. Queria ele me dar o troco, usando agora uma defesa também excêntrica?

Outro fato que pode tê-lo motivado foi que, após a 3ª rodada, e já conhecido o emparceiramento, comprei um Informador.

Segunda hipótese. Teria ele suspeitado de que eu iria preparar alguma linha para enfrentá-lo no dia seguinte  e, por isso, fugiu do rotineiro?

É claro que isso é um mero exercício especulativo, mas vale como um “causo” a ser contado. Só quem pode confirmar a correção dessas hipóteses é o próprio Marco.

2.d4  d5  3.e5  Bf5  4.Cf3  e6  5.Be2  Cb4  6.Ca3  c5  7.0-0  Cc6  8.Be3  f6  9.c4
 
Uma pequena análise restrospectiva: observem que, em apenas 7 lances, um dos cavalos das pretas moveu três vezes, atrasando o desenvolvimento das demais peças. As brancas, ao contrário, renunciaram ao lance “c3” para priorizar esse desenvolvimento.

Nesse contexto, o lance “f6” foi um erro  grave, pois não se deve abrir linhas quando o desenvolvimento está atrasado. As pretas  deveriam ter jogado “c4”.

Agora, temos uma verdadeira guerra de nervos no centro.

9....  fxe5  10.cxd5  exd5  11.Ce5  Cf6

As pretas entregam um peão em troca do seu desenvolvimento. A tentativa de evitar essa perda material não seria uma boa opção. Por exemplo: 11....  Ce5  12.dxe5  d4  13.Bb5  Bd7  14.e6  Bb5  15.Cb5, e se 15....  dxe3  16.Dh5  g6  17.Df3  Ch6  18.fxe3, com forte ataque. Se 11....  cxd4, então 12.Bd4  Cd4  13.Dd4  Ba3  14.bxa3  Cf6  15.Da4, mantendo a pressão.

12.Bb5  Tc8  13.dxc5  Be7  14.Cc2  0-0  15.Bc6  bxc6  16.Cd4  Bd7  17.b4  Dc7  18.Cd7  Dd7  19.f3  Bd8  20.Dd2  Ch5  21.Tae1  Bc2  22.Bg5  Tce8  23.Te8  Te8  24.Te1  Be5  25.Be3  Dc7




Consegui manter um vantagem relevante. Mas as pretas, a partir do lance 19....  Bd8, iniciaram um movimento que visava obter algum contrajogo, colocando pressão sobre o rei branco. Acrescente-se a isso o fator tempo, pois tinha de jogar os próximos 15 lances em apenas 5 minutos. Um campo fértil para o erro, pois naquela época não havia o incremento de tempo.

26.g4  Cf6  27.Te2  Dd7  28.Cf5  d4

Ameaçei jogar Bd4, consolidando a posição. As pretas, acertadamente, avançam o peão em busca de complicações. Tic-tac, tic-tac... Não posso capturar o peão. Meu bispo está cravado.

29.Bg5 

Teria sido melhor 29.Bf2, mantendo a ameaça sobre o peão. As brancas ainda possuem uma confortável vantagem. Mas, agora, as pretas poderiam ter incrementado  as  complicações  com  29....  h5   30.h3  d3  31.Te1  Ch7.

29....  Cd5  30.De1  Ce3  31.Ce3

Deveria ter jogado 31.Be3  dxe3  32.Te3  Bd4  33.Cd4  Dd4  34.Rf2, com vantagem de dois peões. Mas, tic-tac, tic-tac...  Com pouco tempo para decidir, quis evitar eventuais complicações decorrentes da cravada em “d4”.

Dr. Fritz, com seus nervos de silício, diz que as pretas poderiam ter jogado 31....  d3  32.Td2  Bc3  33.Dd1  Bd2  34.Dd2  Dd4  35.Rf2, trocando duas peças pela torre, mas especulando com o peão passado em “d3”. Mas acho que esse é um tipo de decisão muito difícil de ser tomada, no calor da batalha.

31....  dxe3  32.Be3  Tf8  33.Rg2  Dd3  34.Df2  Dc4  35.a3  h5  36.h3  Bc7

Opa! Cedendo a casa “d4” para meu bispo. Tic-tac, tic-tac... Mas já começava a ver uma tênue luz no fim do túnel.           
           
37.Bd4  hxg4  38.hxg4  Dd3  39.Te7  Tf7  40.Te8  Tf8

Ufa! Se 40....  Rh7  41.Dh4

41.Da2  Rh7  42.Tf8  Dd4  43.Dg8  Rg6  44.De6

Já relaxado, não percebi que Df7, seguido de Dh5, levava ao mate.

44....  Rh7  45.Df5  g6  46.Tf7  Rh8  47.Dc8  Bd8  48.Tf8  Rg7  49.Dd8  Pretas abandonam.

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Empatei com o mestre cearense, Fred Saboya, na última rodada. Terminamos com 4,5 pontos, cada, mas fiquei em 2º lugar por conta dos critérios de desempate.

domingo, 5 de abril de 2020

Desventuras de um Capivara III – Vade Retro!

Por Marcello Urquiza

“A mão invisível do mercado” foi um termo cunhado pelo filósofo e economista Adam Smith, lá pelos idos de 1759, e que hoje caracteriza determinada teoria econômica. “A mão invisível da capivara” é uma hipótese parapsicológica, levantada pelo ilustre capivara que vos escreve. Abordarei esse tema com maior profundidade nas linhas que se seguem.

Estávamos na 4ª rodada do XII Memorial Governador Miguel Arraes – Nordestão 2019, lá em Recife (PE). Tinha sido emparceirado com o MF Francisco Cavalcanti, um dos mais importantes jogadores da Paraíba. Salve, grande Chiquinho!

MF Francisco Cavalcanti x Marcello Urquiza
Nordestão 2019 – 31/08/2019

1.Cf3  Cf6  2.d4  d5  3.c4  dxc4  4.Da6  c6  5.Dc4  Bg4  6.Ce5

Já conhecia essa posição. Dias antes, eu tinha participado de um torneio de rápidas em João Pessoa (PB). Na partida com Petrov Baltar, tive a seguinte dúvida: se jogo Be6,  vou atrapalhar o desenvolvimento da ala do rei; com Bh5, eu temia que meu bispo ficasse fora do jogo. Depois de alguma reflexão, resolvi tomar uma decisão salomônica. Nem e6 e nem h5. Iria jogar Bf5! 

Gostaria de ter visto minha expressão quando Petrov fez 7.Df7 – xeque-mate! Tinha acabado de levar um mate pastor!!

6.... Bh5  7.Cc3  e6  8.e4  Cbd7  9.Cd7  Dd7 

Pensei em jogar Cd7, mas, lhe confesso, não o fiz porque não gostei da estética da posição. Pode isso? O certo é que, agora, minhas peças não estavam coordenadas para apoiar a ruptura central.

10.f3  Be7  11.Be3  0-0  12.Be2  Tac8  13.0-0  b5  14.Dd3  Tfd8  15.Tfd1  Db7  16.Dc2  Cd7

Preparando a ruptura. Posição que o cavalo deveria estar desde o 9º lance.

17.a3  Bg6  18.Db3  a6  19.Tac1  c5  20.dxc5

Se 20. d5, as pretas jogariam c4, seguido de Cc5, com bom jogo. Depois de dxc5, a posição está igualada.

20....  Cc5  21.Da2  Td1  22.Td1  Dc7  23.Tc1  Db8  24.b4  Cd7  25.Bf1  Bd6   26.g3  Ce5  27.Rg2  h5  28.Bf2  Cc4?! 

Pura insegurança. Quis liberar a diagonal para jogar h4. E por que não jogá-lo imediatamente? Mestre Chiquinho, certamente, não iria fragilizar seu rei com gxh4.

29.Cb1

Deixando escapar a oportunidade de tomar a iniciativa do jogo com 29.Ca4!.

29.... Ce5  30.Tc8  Dc8  31.Dd2  Dc7  32.Cc3  h4  33.Be2  hxg3  34.hxg3  Dc6  35.Dd4  Cd7 36.Cd1  Be5  37.Da7  f5  38.exf5  Bf5  39.Ce3  Bg6  40.Cg4  Bb2  41.De3  Bf5  42.Dg5  Bg4 43.Dg4  Cf6  44.Dg6  Be5  45.Bc5  Bb2  46.Dd3  Dd5  47.De3  Rf7  48.Rf2  Da2??

Veja bem, caro leitor, sob o olhar objetivo do Dr.Fritz, esse lance não compromete a partida, desde que o peão não seja capturado e a dama retorne ao seu posto. Então por que as duas interrogações? Porque a decisão de capturar já estava tomada.



A posição do diagrama lembra a política de dissuasão praticada durante a Guerra Fria. EUA e URSS tinham, cada qual, um monte de bombas atômicas. Aí um dizia ao outro: “se você jogar uma bomba em mim, eu jogo outra em você!”. E, assim, vivemos por um tempo sob aquele frágil equilíbrio.

Mesma situação nessa partida. As damas representam as bombas.  Resolvi atacar um alvo insignificante, num cantinho bem distante do território inimigo, com Da2.

“-É assim? Então vou jogar uma bomba na capital do seu território!”

Caro leitor, você há de concordar comigo. Salvo umas poucas imprecisões, eu tinha feito um bom trabalho até esse momento. Tive a cautela de não capturar o peão de “a3” nos lances 43 e 44. Temia me expor a um ataque. A posição estava igualada, e a partida se encaminhando para um justo empate. Como explicar a mudança no meu comportamento? Tenho uma hipótese, mas só a apresento depois.

49.Df4  Da3   (49.... Dd5=)   50.g4?

50.Dc7 seria decisivo. Algumas linhas:

a) 50.... Rg6  51.Dd6  Cd5 (Para qualquer outra resposta, as brancas jogariam Bd3, com ataque só defensável mediante entrega de material) 52.De6  Cf6  53.Dd6, voltando a ameaçar Bd3, agora sem a possibilidade de defesa através de Cd5.
b) 50.... Rg8  51.Dd8, seguido de Bd3.

Agora, as pretas têm a chance de igualar novamente.

50....  Bc1  51.Dc7  Rg6  52.Bf8

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Parem o filme!  Essa é a posição que vai embasar minha hipótese!


Você já deve ter percebido que as brancas ameaçam mate com Dg7. Dê mais uma olhada no diagrama. Percebeu que Bd3 é também outra ameaça muito séria? A essa altura, eu já tinha visto  tudo isso. Então concluí que necessitava manter minha dama em “a3”, para defender Bd3, e que, portanto, Bh6 era forçado.

Tanto é que, nas conversas que mantive com Dr. Fritz, ele argumentou que, para Bh6, a melhor resposta seria 53. De5, com igualdade.

Então, convicto da necessidade de Bh6, joguei...

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52.... De3+??

“Endoidou, foi?”. Sei não. Mas sabia que, agora,  a dama tinha de  fazer a defesa simultânea dos 02 pontos ameaçados. Tarefa impossível.

Nas análises “post-mortem”, Mestre Chiquinho argumentou que responderia a Bh6 com g5. Vejamos o que aconteceria: 52.... - Bh6  53.g5  Bg5  54.Dg7  Rf5 e, apesar dessa preocupante   posição, o rei não está acessível às brancas. Paradoxalmente, o rei branco é quem está mais exposto agora. As pretas têm acesso através de “e3” ou “h4”.

Seguiu:

53.Rf1  Ch5  54.gxh5  Rh5  55.Dg7  Df4  56.Dh7  Pretas abandonam.

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Ainda nas discussões do “port-mortem”, quando fiz a defesa enfática de Bh6, Mestre Chiquinho perguntou:

“ - E por que não jogou?”

“ - Sei lá. Alguma loucura.” Respondi.

Porém, Dr. Fritz apresentou uma alternativa. E se 52.... Ce4+, ao invés de Bh6?  As linhas abaixo são algumas das possibilidades:

a) 53.fxe4  De3+  54.Rf1 (Se 54.Re1  Dg1+)  54.... Dh3+  55.Re1  Bh6 (Ameaçando Dh1 e Dc1. Note que o rei preto não está acessível). 56.Dd6  Dc1+  57.Rb3  Db1+, com possível empate.
b) 53.Rf1  Dc3  54.Dd7  Cg3+  55.Rf2  De3+  56.Rg3  Dg1+  57.Rh3  Dh1+, com empate.

É possível que eu tenha vislumbrado essa alternativa e que, ao tentar executá-la, tenha invertido a ordem dos lances? Se você é daqueles que buscam respostas racionais a determinados fenômenos, então vai concordar: “-Sim. É possível que você tenha intuitivamente percebido”.

Quanto a mim, prefiro me garantir. Sabe-se lá se não foi aquela mãozinha, que citei no primeiro parágrafo, quem me obrigou a jogar De3! Então...

Vade retro, capivara!