domingo, 17 de outubro de 2021

Coincidências existem?

Os mais racionais dirão um sonoro sim! Afirmarão que elas são meras manifestações estatísticas.

Outros, com espírito mais desconfiado, poderão atribuir às coincidências características de teorias conspiratórias, sejam de origens terrenas ou sobrenaturais.

Mas … e quando elas se repetem?

Vejam o que aconteceu.

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Torneio Magistral Pernambucano 2021

Em primeiro plano, o MN Marcelo Bowman (PE) enfrentando o MN Vitor Firmo (RN)

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FM Wagner Peixoto Guimarães – Marcello Urquiza

Campeonato Continental das Américas

São Paulo/2019


Link da partida:

https://share.chessbase.com/SharedGames/share/?p=THGE2Ndq1hP379qMoShj48uPdWqfctBaCiH/EGTj5kIFH9U9CgoH5MNP8fNWvojx

No 25º lance, cometi um erro bobo e perdi uma qualidade. Pensei em abandonar a partida, e até registrei a desistência na planilha. Mas depois de outra olhada na posição, mudei de ideia e resolvi continuar. Tentaria resistir.

E assim jogou-se mais 30 lances, nos quais as brancas forçaram a simplificação a fim acentuar sua vantagem material, chegando à posição do diagrama.


Observe que o rei branco não pode penetrar por “e6”, 'f6” ou “g6”, e nem pode se afastar muito do peão de “g5”, já que ele ficaria sujeito a ser atacado pelo bispo.

A tarefa das negras é a de preservar seu peão de “f7”, evitando a penetração do rei branco, e ter atenção a alguns temas derivados de cravadas na 7ª linha ou na coluna “f”.

Vejamos como foram as tentativas do Mestre Wagner...

56.Rg4 Bd4 57.Rh5 Bc3?

As negras esperavam que a cravada em "d2" fosse suficiente para evitar a penetração do rei branco. Mas é um erro, como será visto mais adiante. A simples ...Rg8 bastaria para manter a posição.

58.Rh6 Bd2 59.Tb8+ Re7 60.Rh5?

Tendo em vista a ameaça de ...f6, as brancas resolvem voltar seu rei. Mas com isso deixam escapar uma chance de vitória.

Por exemplo: 60.Tb2 Bf4 61.Te2+ Rf8 62.Tf2 Bc1 63.Tf5 ( Defendendo o peão, o que permite a penetração do rei no campo inimigo) 63... Rg8 64.Ta5 Rf8 65.Rh7, com vantagem decisiva.

60.... Bc3

… de modo que o bispo reassume a grande diagonal.

61.Tb7+ Re6

61.... Rf8, repetindo a posição, teria sido mais coerente.

62.Rg4 Bd4 63.Tb8 Re7 64.Rf5 Bc3 65.Tb3 Ba1 66.Tf3 Bb2 67.Te3+ Rf8 68.Tb3 Ba1 69.Tb7 Bc3

Voltamos à posição do lance 55.

70.Td7 Bb2 71.Td2 Bc3 72.Tc2 Ba1 73.Rg4 Bd4 74.Rh5

Mais uma tentativa de penetração.

74.... Bg7?

Mais um erro que poderia ter custado a partida. Novamente a simples 74.... Rg7 teria sido suficiente para manter a posição, desde que se evite uma eventual cravada do peão de “f7”.

E qual é o problema do lance jogado? Ele dá oportunidade às brancas para reduzir a mobilidade das peças negras com 75.Te2!

Com 74.... Rg7 75.Tc7 Rg8, e se 76.Rh6 Bg7+, e as brancas teriam de começar tudo de novo.

75.g6?

Mas as brancas não percebem a chance, e já impacientes decidem tentar ganhar de outra forma. 75.Te2, apesar de longo e árduo, seria o caminho para tentar a vitória, conforme aponta o Dr. Fritz.

75.... fxg6+ 76.Rxg6

- Primeira coincidência -


E eis que surge a primeira coincidência: um raro final de torre versus bispo. E por que a coincidência? Porque eu o tinha estudado uns 15 dias antes dessa partida...

76.... Bd4 77.Td2 Bc3 78.Td3 Bb2 79.Tb3 Bd4 80.Tb7 Re8

… e sabia que era empate, desde que o rei fosse para um canto de cor diferente das casas do bispo. E é isso que providencio na primeira oportunidade, levando o rei para “a8”.

81.Rf5 Rd8 82.Re4 Rc8 83.Tb5 Ba7 84.Rd5 Rc7 85.Tb3 Bb6 86.Th3 Rb7 87.Th7 Ra8

Atingindo o objetivo. É uma posição inexpugnável. O bispo pode defender as casas “a7 e “b8” contra xeques da torre, e evita a aproximação do rei das brancas via “c7” ou “b6”, como veremos a seguir.

88.Rc6 Ba7 89.Rb5

Por exemplo: se 89.Th8+ Bb8, se então 90.Rb6, seria empate por afogamento.

89.... Bb8 90.Rb6 Be5 91.Ta7+ Rb8 92.Te7

Ameaçando mate e o bispo ao mesmo tempo. Em outras circunstâncias, isso seria fatal. Mas …

92.... Bd4+

E as brancas tiveram de procurar outro caminho tentar vencer. E seguiu assim até o lance 126 (!), quando se completou os 50 movimentos regulamentares e a partida foi dada como empate.

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Marcello Urquiza – NM Rafael Cabral

Torneio Magistral Pernambucano – Masters A

Recife/2021

Link da partida:

https://share.chessbase.com/SharedGames/share/?p=THGE2Ndq1hP379qMoShj4zQq0s3BJT0hsVHaacmrEJY/lMWJWLcVdT9GaN2+kSsf

Depois de um golpe tático no centro do tabuleiro, consegui a vantagem material de duas peças menores por uma torre, conforme o diagrama.

A posição das brancas é claramente superior. Observe que o rei das negras está atado à defesa do peão de “a4”, e a torre sozinha não conseguirá segurar os peões da ala do rei.

A essa altura, eu já antevia a possibilidade de uma segunda coincidência.


49.Cf2 g3 50.Ce4 Tg8 51.Cd2 Tf8 52.Cf3 a3

As negras resolvem liquidar os peões da ala da dama para dar mobilidade a seu rei.

53.bxa3 Rc4 54.Cxe5+ Rxc3 55.Be4 Rb3 56.Cg6 Tf6 57.Cf4 Rxa3 58.Rf3 Rb3 59.Rxg3

Agora a segunda coincidência era praticamente inevitável.

59.... Rc4 60.Bg6 Rd4 61.Rg4 Ta6 62.Rg5 Ta5+ 63.Bf5 Ta8 64.g4 Re5 65.Cg6+ Rd6 66.Rf6 Tb8 67.g5 Ta8 68.Cf4 Tf8+ 69.Rg6 Tg8+ 70.Rh6 Tf8 71.Rg6 Tg8+ 72.Rh5 Tf8 73.Rg4 Tg8 74.Ch5 Tf8 75.g6 Re5 76.g7 Tg8 77.Bh7 Txg7+


- Eis a segunda coincidência -


Outro final muito raro, e que pega muito jogador desprevenido. Acredite se quiser, mas eu tinha estudado este mate e treinado algumas posições contra Dr. Fritz novamente alguns dias antes desta partida. Na ocasião, consegui finalizar em 52 lances. Na segunda tentativa, em 48. E mais alguns exercícios abaixo dos 50, mas ainda com um número elevado de movimentos. Ou seja, eu tinha noção da técnica. Mas ainda não era “expert” no assunto. E eis que surge a necessidade de testar esse conhecimento na vida real...

Conforme os manuais de finais, a primeira tarefa e levar o rei adversário até a borda do tabuleiro. Depois conduzi-lo a um dos cantos que seja da mesma cor das casas do bispo. Só assim será possível dar o mate.

78.Cxg7

A partir dessa posição, Dr. Fritz calcula que as brancas deveriam dar xeque-mate em 28 lances.

78.... Rf6 79.Ch5+ Re5 80.Bf5 Rd4 81.Rf4 Rd5 82.Cf6+ Rd4 83.Be4 Rc4 84.Re3 Rc5 85.Ce8 Rc4 86.Ba8 Rc5 87.Rd3 Rb4 88.Rd4

Vejamos o balanço do Dr. Fritz: aqui ele informa que as brancas ainda necessitariam de 25 lances. Ou seja, com dez tempos gastos, apenas três foram realmente úteis. Sete teriam ido para o lixo, caso meu adversário tivesse feito o movimento mais resistente: 88.... Rb3.

88.... Rb5

Agora serão necessários apenas 18 movimentos.

89.Bd5 Rb4 90.Cd6 Ra3 91.Rc3

Ufa! Aos trancos e barrancos, consegui cumprir a primeira tarefa. Agora cabe levar o rei ao canto de “a8”.

91.... Ra4 92.Bf7 Ra5 93.Rc4 Rb6

À primeira vista pode parecer que o rei negro conseguiria escapar. Mas os próximos lances evidenciam a necessidade da estreita coordenação entre as peças brancas.

94.Cb5 Rc6 95.Be8+

E assim o rei negro continua encurralado.

95.... Rb6 96.Rb4 Ra6 97.Rc5 Ra5 98.Cd6 Ra6 99.Bb5+ Ra7 100.Rc6

O rei está no corredor da morte...

100.... Rb8 101.Bc4 Ra7 102.Rc7 Ra8 103.Ba6 Ra7 104.Bc8 Ra8 105.Bb7+ … as negras abandonam.

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A execução do mate não foi um primor de técnica, mas fiquei muito feliz em escapar da vergonha de não conseguir dá-lo...

Por fim, se me perguntassem se acredito em coincidências, responderia que sim. Mais ainda assim, sou daqueles que evitam passar por baixo de escadas. Não é de bom tom provocá-las. Vai ver que...

E convenhamos, essas duas situações não foram meras coincidências. Há algo de sobrenatural nisso. Aliás, você conhece a expressão “o universo conspira a nosso favor”?

Caíssa tem sua própria versão. É a seguinte: “Estude, capivara. Estude que eu conspirarei a seu favor”.

Obrigado, Caíssa!

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O Torneio Magistral Pernambucano 2021 foi uma iniciativa da Federação Pernambucana de Xadrez. Contou com duas séries. Participei da Série A, que foi vencida pelo FM Vinicius Tiné.

Link do Chess Results:

https://chess-results.com/tnr583644.aspx?lan=10

Registro meus parabéns a Yoshio Hiramine e equipe pelo excelente trabalho que vêm realizando à frente da FPEX.








quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Qual é o torneio mais charmoso do Brasil?

Proponho essa enquete: Qual o torneio mais charmoso do Brasil?

Dê sua opinião.

Vou dar a minha, mas não me acusem de bairrismo.

É um torneio tradicional e longevo. Um dos grandes do país. Na última edição foram quase 150 participantes … e teve até lista de espera. A organização é impecável, com um toque da receptividade nordestina. E o local? No confortável Littoral Hotel, na orla da belíssima praia de Cabo Branco, em Joao Pessoa!

Isso mesmo! Estou falando do Memorial Bobby Fischer.



Aliás, tendo em vista o avanço da vacinação e a consequente regressão da pandemia, a Federação Paraibana de Xadrez está avaliando a possibilidade de lançar o XI Aberto do Brasil – Memorial Bobby Fischer em 2022.

Vamos torcer!


terça-feira, 20 de julho de 2021

E-book de "O escudeiro de Caíssa" na Amazon!

Agora você pode obter a versão digital do livro Bobby Fischer - O escudeiro de Caíssa, no site da Amazon! Como novidade, o e-book tem uma nova capa e traz os links para o chessgames.com de todas as partidas reproduzidas no texto, o que melhora a exploração do conteúdo do livro, ao permitir que o leitor confira de imediato todas as situações vividas por Fischer nessas partidas, e que foram destacadas por Fernando Melo. Também nessa versão digital, fizemos uma reparação histórica, ao mencionar o nome de mais um enxadrista brasileiro que enfrentou o genial ex-campeão mundial (cinco, portanto, no total), mas que acabou não sendo referido na versão impressa do livro. 

Confira no link abaixo:

domingo, 20 de junho de 2021

Darcy assusta os russos!

 Por Fernando Melo




O GM Darcy Lima (ELO 2516) tem uma passagem bastante curiosa na sua vida profissional de enxadrista. Todos nós sabemos que os russos são os melhores do mundo. É mesmo uma questão cultural. Não adianta questionar. Lembremos que em 1972, veio Bobby Fischer e tomou a coroa, deixando os russos atordoados. Atualmente o campeão do mundo não é russo. É da Noruega, mas isso não tira o mérito dos russos continuarem pontificando no tabuleiro mundial.

Nas eliminatórias da Copa do Mundo de 2011, o GM Peter Svidler (ELO 2743 - 8 vezes campeão da Rússia) enfrentou o brasileiro, e a primeira partida terminou empatada. Até onde estou informado, o russo "suou" para não perder esse embate, já que teve um momento em que ficou inferior. O GM Alexander Grischuk, segundo de Svidler nessa Copa, chamou a atenção deste ,ao dizer que o ELO de Darcy não representava a força que ele tinha, que tivesse cuidado.  E na segunda partida, Svidler venceu e Darcy teve que voltar para o Brasil, com o melhor dos troféus: ter conquistado o respeito dos russos.

terça-feira, 15 de junho de 2021

Bobby Fischer - O escudeiro de Caíssa



Quem desejar adquirir o livro O escudeiro de Caíssa, de autoria de Fernando Melo, de qualquer lugar do Brasil, pode enviar e-mail para samelojp@gmail.com, informando nome e endereço completo (com CEP), que retornaremos o contato, com instruções para que seja efetuado o pagamento no valor total de R$ 30,00 + custos de postagem.


Confira a seguir o prefácio do livro:

Tenho cá para mim que Fernando Melo está feliz, muito feliz, bastante feliz! Ele certamente haverá de perdoar esse plágio do seu jeito particular de descrever a intensidade de um adjetivo nos seus textos. É porque, só assim, para tentarmos capturar o sentimento que há de lhe ter dominado, após a conclusão dessa obra sobre o ex-campeão mundial de xadrez, o genial norte-americano Bobby Fischer!

E antes de explicar a razão dessa felicidade, devo primeiro dizer algo mais. Diz-se que o homem, na sua vida, deve plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro... Essa frase talvez permita interpretações das mais diversas, dentre as quais, provavelmente, aquela que a toma em seu sentido literal. E se assim fizermos, ao menos no que diz respeito a escrever um livro, Fernando Melo não teria ainda cumprido a sua missão entre nós, mesmo já tendo escrito, não apenas um, mais muitos outros livros, sobre temas dos mais diversos. Faltava um! Faltava um livro sobre xadrez! E, sobretudo, faltava um livro sobre Bobby Fischer!

Ele agora chega nas mãos dos leitores, notadamente do público enxadrístico, para se somar ao repertório de publicações de Fernando Melo, que, assim como fez nos seus romances, nos enredos policiais, nas biografias de personalidades paraibanas marcantes, traz seu estilo jornalístico livre, irreverente, que não se rende aos rigores de uma erudição indesejada.

Não é difícil perceber nas entrelinhas dos seus escritos, a paixão que o motiva! Fernando Melo é, sem dúvida, um sujeito movido pela paixão! Por isso mesmo, com a mesma energia intensa com que se dedica a um projeto, pode muito bem descartá-lo, sem cerimônia, se algo irrompe em seu caminho, trazendo-lhe frustração. Até mesmo o xadrez foi alvo das suas idas e vindas, mas a Deusa Caíssa, diligente, não desejou que um súdito assim, tão intensamente apaixonado pela sua nobre arte, dela se afastasse em definitivo.

E assim o xadrez, desde sempre, se fez, e se faz, presente na vida de Melo e de sua família, que além de mim, seu filho caçula, tem no seu primogênito Sílvio, meu irmão, e na sua dedicada esposa Ana, minha querida mãe, seguidores dessa magia do jogo dos reis, que tanto nos une e nos fascina! A “febre”, inclusive, não cessa! Melo haverá de ficar radiante ao ler estas linhas e saber que seus netos (meus filhos) já demonstram um notório interesse pelo xadrez, mais além do que o simples brincar! Daniel (10 anos) “quer ser Bobby Fischer” e Maria Rita (6 anos) “quer ser Judit Polgar” (indiscutivelmente a maior representante do xadrez feminino da história!).

Tal intensidade na vivência do xadrez ganhou especial força nos últimos oito anos, em função da criação, por Melo, do blog Reino de Caíssa, que, desde então, traz postagens quase que diárias sobre o universo das 64 casas, seja a nível local, nacional ou internacional. O endereço na internet já rompeu a casa de um milhão de visitantes desde o seu início em 2009 e é, certamente, um dos espaços sobre xadrez mais prestigiados na internet brasileira.

E sabe qual o tema mais recorrente de matérias no blog? Não seria difícil para o leitor curioso, numa breve pesquisa por lá, descobrir que o campeão de postagens é ele: Bobby Fischer! Até mesmo eu, que durante um certo período assumi a titularidade do blog (hoje Melo e eu dividimos a editoria da página) não me furtei, vez por outra, de reverenciar o eterno ex-campeão mundial americano, principalmente nos momentos de promover o principal evento do calendário enxadrístico da Paraíba, cujo nome, claro, não poderia ser outro: Memorial Bobby Fischer, também uma criação de Melo, que hoje tem status de Aberto do Brasil e desfruta de grande aceitação em todo o país (em 2017, o evento chega a sua 8ª edição).

Alguém pode estar pensando: ora, os filhos só celebram Bobby Fischer assim, influenciados pela paixão do pai por ele! Pode até ser, mas, no meu caso, tenho um precedente que me favorece. Numa família de vascaínos (meu pai, minha mãe e meu irmão), tive a sorte de sair flamenguista, o que mostra talvez um pouco de minha autenticidade!

Irreverências à parte, o fato é que não parece muito árduo notar em Fischer uma genialidade que lhe fez único! Se até mesmo nomes como Kasparov e Carlsen dão depoimentos nos quais podemos perceber, sem muito esforço, o reconhecimento de Fischer como o maior enxadrista de todos os tempos, parecem de menor relevância quaisquer opiniões em sentido diverso...

A propósito, mesmo conhecendo os grandes feitos de Fischer, não é raro encontrar-me impressionado novamente ao reler suas proezas, como, aliás, aconteceu quando lia este livro de Fernando Melo.

Confira você mesmo, leitor! Deguste as próximas páginas e se aperceba da grandeza de Bobby Fischer!

E não se preocupe, achando que vai encontrar passagens exaustivas sobre a vida do americano genial. Nota-se com facilidade que não foi o propósito de Fernando Melo escrever uma biografia completa do saudoso ex-campeão mundial. A obra está perfeitamente delimitada apenas naqueles que, para o autor, foram os momentos mais intensos da carreira enxadrística de Fischer, com ênfase maior no seu significado para o xadrez e menos tinta nas suas idiossincrasias ou personalidade polêmica.

Sob alguns títulos bem criativos, os capítulos retomam a campanha do americano em todos os torneios de relevo de que participou, amparados em uma investigação de cunho jornalístico, que buscou contribuições de alguns dos principais autores sobre Fischer.

Com números que realçam os seus feitos, reprodução de comentários de especialistas e jogadores da época (muitos dos quais seus rivais russos), além, é claro, de partidas célebres selecionadas de Fischer, o livro de Melo, na sua linguagem que lhe é peculiar, há de agradar ao seu público, quem sabe contribuindo para despertar neste também uma admiração especial por aquele que, estamos nós convencidos, foi o maior enxadrista da história!

Fernando Melo agora é autor, portanto, de um livro sobre Bobby Fischer, o Escudeiro de Caíssa! Eis aqui a razão de sua felicidade!

 

João Pessoa 26 de dezembro de 2016

 

Fernando Sá de Melo

Coeditor do Blog Reino de Caíssa

segunda-feira, 14 de junho de 2021

O Golpe da Loira Fatal

 Antes de passar ao “causo” que nos ocupa, necessito me justificar perante os leitores do Blog Reino de Caissa. Meus textos, apesar de abordar assuntos técnicos referentes ao xadrez, têm características de crônicas, pois busco sempre vinculá-los, numa abordagem bem humorada, a algum episódio que testemunhei ou do qual fiz parte.

Os cronistas se inspiram em pequenos episódios do dia a dia, dando-lhes um significado especial, para escrever seus textos. Longe de mim querer me incluir numa tão nobre categoria de artistas. Mas, a exemplo deles, retiro do cotidiano do xadrez os motivos para meus escritos. E, convenhamos, a vida vem andando devagar... E com justa razão. Essa pandemia sem fim nos obriga a reduzir o ritmo a fim de conter a proliferação do vírus. Da mesma forma acontece com o xadrez presencial. Os torneios são raros, motivo pelo qual não venho publicando com a regularidade que gostaria.

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São raros, mas acontecem. Vez por outra, participo de algum. Apesar da forte oposição da família. Desta vez foi o Aberto do Brasil de Araruama, no Rio de Janeiro. Embarquei para lá no dia 01/06 e fiquei hospedado no hotel onde os jogos seriam realizados. No dia seguinte, o MN Joca Dedeus me mandou uma mensagem perguntando se eu aceitaria dividir o apartamento com um amigo dele, que tinha ficado sem acomodação. “Sem problema, Mestre”, respondi.

Meu companheiro de quarto, carioca boa praça, tinha uma rotina bem definida: logo que acordava, ligava para a namorada, da cama mesmo. No intervalo entre as duas rodadas do dia, outra ligação. E, finalmente, antes de dormir, tinham a última conversa.

Era um chameguinho de lá, outro chameguinho de cá; ciumezinho de lá, ciumezinho de cá; saudade do lado de lá, saudade do lado de cá... Coisas de casal apaixonado. Já habituado com o teor das conversas, eu dava pouca atenção ao que se passava. Mas uma frase dita em uma dessas ligações despertou minha atenção.

- Olha, você está chorando porque quer atrair a atenção dos olhares masculinos. Esse é o golpe da loira fatal!”, disse meu companheiro de quarto, creio que para descontrair.

Opa!!”, pensei. Aquilo me fez lembrar de algo de tinha ocorrido na partida que joguei naquela tarde.

Deixo a interpretação do que aconteceu a seu cargo, caro leitor.

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Fotografia com minha simpática adversária. 

E antes que alguém pergunte de que se trata aquela garrafa que estava na outra mesa, já respondo: é uma garrafa de cerveja mesmo! A foto foi tirada no final da última rodada, e eu já estava comemorando minha participação em mais uma festa do xadrez brasileiro.

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Marcello Urquiza x Kim Garcia

Aberto do Brasil de Araruama

3ª rodada – 04/06/2021


Link da partida:

https://share.chessbase.com/SharedGames/share/?p=pABq8r9nOXgz/X55gsMIxvIutPEnr2gH/qj0ZLLuWJKpmVNUruIlOD3kDJmrp6n5

1.e4 c6 2.d4 d5 3.Cc3 dxe4 4.Cxe4 Bf5 5.Cg3 Bg6 6.h4 h6 7.Cf3 Cd7 8.h5 Bh7 9.Bd3 Bxd3 10.Dxd3 e6 11.Bf4 Da5+ 12.Bd2

Não nutro muita simpatia por essa linha da Caro Kann. Ela já foi exaustivamente estudada, e algumas de suas variantes teóricas chegam a ultrapassar vinte lances. Mas como não conhecia outra forma de enfrentá-la, então fui desse jeito mesmo.

12.... Bb4+

Uma novidade para mim.

13.c3 Be7 14.c4 Dc7 15.0-0-0 Cgf6 16.Rb1 0-0-0

Aqui o mais jogado é 16.... 0-0, o que me parece ser a razão do lance 12.... Bb4+, provocando o avanço do peão “c”. E então teríamos uma partida de roques opostos, com todas as complicações que envolvem esse tipo de posição.

17.Ce4 Cxe4 18.Dxe4 Cf6 19.De2 The8 20.Bc3 Cd7 21.Ce5 Tf8

Eu achava que após a troca dos cavalos, com 21.... Ce5 22.fxe5, as brancas teriam alguma vantagem devido ao maior espaço na ala do rei. Mas Dr. Fritz não concorda com esse entendimento e afirma que a posição estaria igualada.

O lance jogado na partida é inferior, pois dá oportunidade às brancas de fazer a ruptura central, com graves consequências para as negras.

22.d5 Cc5

As negras não tinham boas opções. Por exemplo:

a) Se 22.... exd5, eu estava pensando em jogar 23.Cxd7 Dxd7 24.Bxg7 ou 23.Cc6 Dxc6 24.Dxe7, com vantagem em ambos os casos.

b) Com 22.... cxd5, as negras exporiam seu rei perigosamente após 23.cxd5 exd5 24.Td5.

23.dxc6

Dirigi minha atenção para o peão de “c6”. Nem cheguei a considerar 23.dxe6, pois entendi que o lance jogado seria suficiente para obter vantagem.

Preciso fazer um “mea-culpa”: estávamos numa posição crítica da partida, e nenhuma possibilidade poderia ter sido descartada.

Não que 23.dxc6 seja é um mal lance, mas a melhor opção mesmo era capturar o peão de “e”. Por exemplo:

23.dxe6 fxe6 (se 23.... Cxe6, segue 24.Cxf7) 24.Cg6 Txd1+ (24.... Tg8 25.b4) 25.Txd1 Td8 26.Bxg7, com vantagem decisiva.

23.... bxc6 24.Df3 Bf6

24.... Rb7 não resolveria o problema. Por exemplo: 25.Cxf7 Txd1+ 26.Txd1, e se 26.... Bg5, então 27.Cd6+.

25.Txd8+

Não quis capturar o peão de “c6” de imediato para não comprometer minha estrutura de peões, depois de 25.Cxc6 Txd1+ 26.Txd1 Bxc3 27.bxc3. Mas Dr. Fritz avalia que essa posição é claramente vantajosa para as brancas.

Eu quis ganhar o peão sem ceder nada em troca. O GM Jonathan Rowson escreveu um livro chamado “Los siete pecados capitales del ajedrez”. Recomendo. Mas só que ele não abordou o pecado da avareza...

Aliás, sobre avareza, você pode ler o seguinte texto:

https://reinodecaissa.blogspot.com/2020/03/desventuras-de-um-capivara-i-o-pecado.html

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Foi aí que eu percebi que minha adversária estava mordiscando as unhas.

25.... Txd8



O momento tão aguardado: o ganho de um peão com 26.Cxc6, ademais de expor do rei das negras.

Fiz menção de tocar no cavalo. Mas recuei. Precisava dar uma última checada na posição...

Minha adversária continuava a mordiscar as unhas, agora com um jeito um tanto desalentado. Isso só fez aumentar a confiança de que estava no caminho certo.

Como não observei nenhuma intercorrência (para usar uma palavra da moda), decidi capturar o peão... Vamos que vamos!

26.Cxc6

Mas …

26.... Td3!

Hã??” …

… “Ui!”

Devo ter feito uma expressão parecida com a que Carlsen fez quando levou aquela pancada de Supi.

Perdi meu cavalinho...”

E foi aquele desespero para tentar encontrar uma forma de minimizar o prejuízo. 27.Ba5 era a melhor alternativa. Por exemplo:

Com 27.Ba5 Txf3 28.Bxc7 Rxc7 29.gxf3 Rxc6, e talvez eu tivesse alguma chance de lutar por conta dos peões da ala da dama. Mas percebi que as pretas poderiam jogar 28.... Txf2, e o final resultante me pareceu sem esperança.

Então tomei uma medida compatível como meu desespero, apelando para um eventual xeque perpétuo.

27.Cxa7+ Dxa7 28.Dc6+ Dc7 29.Da8+ Rd7 30.Bxf6 gxf6 31.Df8

As brancas estão perdidas. Além da desvantagem material, seu rei está sozinho frente a três poderosas peças. Bastaria organizar o ataque. Dr. Fritz sugeriu a seguinte linha: 31.... De5 32.Dxf7+ Rc6 33.De8+ Rc7 34.Db5 Df5 35.Ra1 Dxf2.

31.... Dd6

Mas as pretas preferiram materializar sua vantagem de forma mais tranquila.

32.Dxh6

Ainda fruto do desespero. 32.Dxd6+ era a melhor alternativa.

32.... Td2

As brancas não encontraram o caminho mais fácil para a vitória. Com 32.... Ca4, o ataque seria irresistível.

33.De3 Td3

Era melhor 33.... Td1+ 34.Txd1 Dxd1 35.Dc1 Dxh5, com vantagem, apesar de que as brancas teriam algumas chances de complicar o jogo.

34.Dc1

A essa altura, com o tempo se esgotando para ambos os jogadores, os erros se sucediam. Ademais, a posição era muito complexa. Eu estava pensando na possibilidade de trocar minha dama pela torre e pelo cavalo, e avançar o peão de “h” até “h7”, deixando a dama negra limitada a impedir h8=D.

Mas o Dr. Fritz diz que a melhor defesa era 34.De2!, pois se 34.... Td2, a dama retornaria para “e3”. E se as negras tentassem incrementar o ataque com 34.... Ca4, então 35.Dc2, obrigando o cavalo a voltar.

A posição estaria melhor para as negras, mas as brancas teriam amplas possibilidades de defesa.

34.... Ce4

E as negras perderam o foco do ataque devido à sua preocupação com o peão “h”.

Com 34.... Td2, seguido de ...Ca4, teria acontecido a troca da dama pela torre e pelo cavalo. Vejamos o que Dr. Fritz diz a respeito disso: 34.... Td2 35.h6 Ca4 36.Ra1 Cxb2 37.Dxb2 Txb2 38.Rxb2 Db4+ 39.Ra1 Dc3+ 40.Rb1 Dd3+ 41.Rb2 Dh7, e o peão não conseguiria chegar a “h7”, com vantagem decisiva para as negras.

Mas como ganhar? O rei não tem tempo de ir para “h8”, já que os peões da ala da dama avançariam. Quem se propõe a formular um plano?

35.h6 Cg5

Com 35.... Cxf2 36.h7 Cxh1 37.h8=D Td1 38.Dxh1 Txh1 39.Dxh1 Dxd3+, o final resultante estaria empatado.

36.Rc2 Ch7

Último erro. Agora as pretas estão perdidas. Com a simplificação que se segue, o cavalo ficará retido em “h7”, e o rei preto não poderá conter o avanço dos peões da ala da dama.

Com 36.... Dd4 a partida estaria igualada. Recorro a Dr. Fritz mais uma vez (aliás, ele foi imprescindível para a análise dessa partida): 36.... Dd4 37.c5 De4 38.Td1 Txd1+ 39.Rxd1 Dxg2 40.Dd2+ Re8 41.Dd6, com provável empate por xeque perpétuo.

37.Td1 Txd1 38.Dxd1 Dxd1+ 39.Rxd1 f5 40.b4 e5 41.a4 Rc6 42.a5 e4 43.g3 f6 44.b5+

As pretas abandonam.

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Judith Polgar certa vez disse que o xadrez tem um importante componente psicológico. Que seria difícil para ela vencer um computador, já que não seria possível confundi-lo.

Sabemos que as reações de nossos adversários indicam como eles estão se sentindo em determinado momento do jogo. Suas expressões corporais, expressões faciais, grunhidos, forma de fazer um lance, etc. Tudo isso são indicadores.

Mas também existem os gestos “teatrais”. O Professor Antonio Dutra, de João Pessoa, se tornou conhecido entre os amigos como o “Mestre das Táticas” porque, jogando uma partida, ele executou um lance e de imediato levou as mãos à cabeça, dando a impressão de que tinha cometido um erro crasso. O gestual passou credibilidade para seu adversário, que aceitou de bom grado o peão que ficou pendurado... Perdeu a partida, é claro.

E isso nos impõe mais um desafio: identificar se as sinalizações são autênticas ou se se tratam apenas de “cena”.

Não sei dizer se o mordiscar de unhas de minha adversária foi “cenográfico” ou apenas um cacoete sem qualquer vinculação com a partida. Mas o certo é que ele me deu uma falsa sensação de segurança.

Isso posto. Já alertei aos leitores que é necessário ter muito cuidado quando formos navegar pelos mares tormentosos das linhas táticas.

E se sua adversária for uma moça bonita mordiscando as unhas, com um jeito meio largado, então redobrem a atenção!

Cuidado com o canto das sereias!

Quem avisa, amigo é...





quarta-feira, 28 de abril de 2021

Não tenhais medo: ou o dia em que eu derrotei um Grande Mestre

 Por Arthur Olinto


Era apenas uma terça-feira comum: trabalho, trabalho e mais trabalho. No final do dia, nada melhor do que se dedicar a um hobby, ocupar a mente para relaxar. Ligo o computador, uma leve brisa corre pela sala do meu apartamento, nove da noite. Enfrento o primeiro adversário. Vitória tranquila, sem contratempos. Levanto, pego uma água, quando volto à mesa, meu relógio já está correndo. Inicio com o meu usual peão de rei: e até aí, tudo bem.

Quando olho para o lado da tela, percebo que há algo diferente: “GM”, estava lá a sigla. Quase 2600 de rating. Começo a suar frio, não era possível enfrentar um jogador tão forte na segunda rodada de um torneio on-line. Estava diante de Alexandr Fier, o número 3 do país e tricampeão brasileiro! Jogador de estilo arrojado, pra cima, famoso por aparentar não ter medo de nenhum adversário e dono de um apelido que é um trocadilho com o seu próprio nome: NoFear (*). 

Começo a pensar muito nos lances, com a sensação de que eu seria massacrado a qualquer momento. Era arco e flecha contra uma bomba nuclear, Davi contra Golias. Mas, já diria Joseph Climber: a vida, meus amigos, é uma caixinha de surpresas...

 O autor conversando com o GM Supi, durante o Memorial Bobby Fischer/2018


Então, vejam o que aconteceu:


Arthur Olinto (2298) – A. Fier (Microwaver – 2588)

6º Brasileirão de Xadrez On-line - 24/03/2021

Plataforma Lichess


Link da partida:

https://share.chessbase.com/SharedGames/share/?p=wreLWLCowuJf4dXxHRWhjPm/1XUEY/9Od6sxsZ1mtnnxynTSB6GIAVh/bhmpKtPb


1. e4 c5 2. Nc3 

Siciliana Fechada. Evidentemente que não iria entrar na teoria com um GM, seria suicídio. Então, aqui estamos jogando xadrez, sem decorebas.

2.... Cc6 3. Cge2 g6 4. d3 Bg7 5. g3 d6 6. Bg2 e5 7. O-O Cge7 8. f4 h5

O preto abre mão do roque buscando um ataque rápido na ala do rei.



         9. Be3 h4 10. Dd2 hxg3 11. hxg3 Bg4 12. f5 

Abrindo linhas de para o ataque.

12.... gxf5 13. exf5 Cxf5 14. Cd5 Cxe3 15. Dxe3 Dd7?? 

O erro que custou a partida: ele pretende rocar grande, mas é claro que eu não deixei.

16. Dg5 Th7 17. Cec3 Ce7 

Perdendo uma peça imediatamente.



          Agora, o preto não tem como segurar o bispo de g4 depois da captura do cavalo de e7! Vantagem decisiva para as brancas.

18. Cxe7 Bh3 19. Cf5 Bxg2 20. Rxg2 Bf8 21. Ce4 Dc6 22. Rg1 Th8 23. Cf6+ Rd8 24. Cg8+ Rc7 25. Df6 Dh1+ 26. Rf2 Dh2+ 27. Re1 Txg8 28. Dxf7+ Rb6 29. Dxg8 Bh6 30. Db3+ Rc6 31. Cxh6 Dxh6 32. Tf7 b5 33. a4 b4 34. Dc4 Dh1+ 

O preto tenta um contra jogo, sem sucesso. 

35. Re2 Dg2+ 36. Tf2 Dxg3 37. Db5+ Rd5 38. Dc4+ Rc6 39. Da6+ Rd5 40. Db7+ Re6 41. Dxa8 c4 42. Df3 Dg6 43. Df6+ Dxf6 44. Txf6+ 1-0

Nervos à flor da pele, ainda sem acreditar na rendição do Grande Mestre, suspiro aliviado. Jogar sem medo, "no fear", sempre! 


Nota - "No fear": sem medo.

sábado, 13 de março de 2021

A culpa foi da Nina

Em fevereiro, no período de 26 a 28, foi realizado o Aberto do Brasil de Aparecida de Goiânia. Em que pese a pandemia e as preocupações da família, lá fui eu de novo. A “secura” estava grande... Mas agora vou me aquietar. Esperar esse vírus entrar em declínio para voltar a jogar.

O pódio do torneio: GM Neuris Delgado, GM André Diamant e GM Darcy Lima

Me aconteceu de tudo no torneio: ganhei a primeira partida por “mate celular”. O telefone do meu adversário tocou durante a partida!

Na terceira rodada, fiz uma grande bobagem, pois achei que era obrigado a trocar minha dama por torre e bispo, quando poderia tê-la trocado por torre e duas peças menores. Passei o resto da partida tentando empatar, aí meu adversário ficou impaciente e quis forçar a vitória... terminou perdendo.

Na quinta, aceitei um sacrifício não obrigatório e levei mate em quatro lances! Aí, aí, aí... acho que eu, vai lá, estava cansado, né?

Por fim, segue o relato de outra situação inusitada. Com cem por cento de aproveitamento nas três primeiras rodadas, na próxima não teria como escapar de enfrentar um dos quatro Grandes Mestres que estavam participando. O Swiss Maneger me encaminhou para o anfitrião, o GM André Diamant.

Em tempo, não sei como classificar o que aconteceu: se como voo ou desventura. Deixarei essa escolha a seu cargo.

Partida entre o GM Alexandr Fier e o GM André Diamant.

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Marcello Urquiza x GM André Diamant

Aparecida de Goiânia (GO), 27/02/2021

Link da partida:

https://share.chessbase.com/SharedGames/share/?p=F3AoK6jiLR4AmCIEDIzLaj9R7kv+vzQ/udKLX2DtU+Fa3iyoSlTc2X+5eI+1d6U+


1.e4 c5 2.Cf3 Cc6 3.Bb5 e6 4.0-0 Cge7 5.Te1 Cd4 6.Cd4 cxd4 7.c3 a6 8.Bf1 Cc6 9.d3

Há outras opções mais agudas baseadas em Ca3 ou b4. Mas, além de não me lembrar de nenhuma linha concreta, não seria de “bom tom” ter uma atitude mais agressiva frente a um Grande Mestre. Melhor jogar algo mais tranquilo...

9... Bc5 10.Cd2 0-0 11.Cb3 Ba7 12.cxd4 Cd4 13.Be3 e5

ou 13.... Cb3 14.Db3 Be3 15.Te3 b5 16.d4, com jogo igual.

14.Cd4 exd4 15.Bf4 d6 16.Be2

Converse com as peças”, aconselha Jonathan Rowson, em seu livro “Los siete pecados capitales del ajedrez”. Recomendo sua leitura. Troquei umas ideias com meu bispo e decidimos que sua melhor posição era na casa “f3”.

16.... Be6 17.Dd2 a5 18.Bf3 Bc5 19.a3 Db6 20.Tac1 f6

Buscando se prevenir a uma possível ruptura das brancas em “e5”.

21.h3 Tfe8 22.Bg4

Libera o peão “f” com ganho de tempo. Não acreditava que as pretas trocariam seu bispo bom, embora fosse possível.

22.... Bb3 23.Bg3 Te7 24.f4 Tae8 25.Bh5

Mais um ganho de tempo. O bispo retornará para f3. 25.... g6 fragilizaria a estrutura do roque.

25.... Tf8 26.Te2 a4 27.Bf3 Db5

Tocando meu peão de “d”. Mas o que me preocupou mesmo foi a seguinte ameaça: Bb6, seguido de Ba5, capturando a dama.

28.f5

Dando um suspiro para a dama e preparando o avanço g4.

28.... Bf7

Mas o plano das negras era outro. Esse lance evita o Bh5 das brancas, permitindo que a torre de “f” retorne para “e8” quando, então, será tentada a ruptura em “d5”.

29.Be1

Evita a ameaça do comentário do lance 27 e libera o avanço do peão “g”. A preocupação com a manobra Bb6/Ba5 me custou valiosos minutos. Então, quando cheguei em casa, Dr. Fritz me fez ver que 29.... Bb6 não já seria possível, tendo em vista 30.Bxd6. Como esse doutor é chato... joga as coisas assim, na nossa cara! Mas os capivaras têm dessas manias: costumam ver fantasmas quando enfrentam um jogador mais forte.

O lance jogado não comprometeu a posição, mas 29.Bf4, com a mesma ideia de expansão da ala do rei, daria uma pequena vantagem às brancas. Agora o jogo está igualado.

29.... Tfe8 30.g4 d5?!


Tomei a liberdade de colocar o signo de duvidoso em um lance de um Grande Mestre. Eu já tinha percebido a fragilidade desse movimento durante o jogo, mas agora estou respaldado pela abalizada opinião do Dr. Fritz. As pretas estão sendo coerentes com seu plano, mas observe que lhes falta um tempo. Por exemplo: se a vez de jogar fosse delas, após 31... dxe5 32.Be4, não poderiam jogar 32.... Bd5 por 33.Bd5, com xeque.

Por outro lado, o bispo de “c5” ficou sem a proteção do peão. A dama precisará se preocupar com sua defesa, além de alguns temas táticos baseados em Txc5 e Bb4.

31.g5 fxg5 32.Dg5 h6

Notei que meu adversário só se deu conta de um detalhe tático nesse momento. Sua intenção era jogar 32.... Dd3, cuja resposta teria sido 33.f6, com ataque duplo. Mas “a emenda ficou ficou pior do que o soneto”, pois o lance jogado piorou a posição das negras e não debelou a ameaça de f6.

Ironicamente, a melhor resposta era mesmo 32.... Dd3. Uma possível continuação seria: 33.f6 Bg6 34.fxe7 Df3 35.Tf2 De4 36.Tc5 De1+ 37.Tf1 De7 38.De7 Te7 39.Td5, com muito jogo pela frente.

33.Dg3 Rh7 34.e5

A posição das negras é desesperadora. Percebendo a possibilidade concreta de vencer o jogo, me levantei e fiquei observando a posição à distância. Havia muitas ameaças rondando o rei negro. Por exemplo: 35.Tg2 Bg8 36.Dg6+ Rh8 37.f6 ou 35.Tg2 Tg8 36.e6 Bd8 37.Bd5, etc.

Então notei um lance que evitaria o desastre imediato: Bd6. Visualizei a seguinte linha: 34.... Bd6 35.exd6 Te2 36.Be2 Te2 37.Tc7. Pensei: “vou esperar meu adversário jogar para avaliar melhor a posição resultante”.

Após longa reflexão, Diamant joga...

34.... Bd6

e propõe empate.

Sabe aqueles hormônios da felicidade? Serotonina, dopamina, endorfina? Meu cérebro foi imediatamente inundado por eles. Foi um tal de Nina, Mina e Fina a dar pinote e a fazer algazarra dentro da minha cabeça, que fiquei sem a mínima condição de pensar. Avaliar a posição resultante? Sem chance.

Estiquei o punho e cumprimentei meu adversário, aceitando a proposta.

Ele ficou olhando para mim, atônito. Confirmei:

- Sim. Eu aceito seu empate.”

Então ele reagiu, um tanto indignado:

- Mas você está ganho!!”

- Não quero nem saber! Eu estou muito feliz!!”, respondi em voz alta, recebendo uma imediata reprimenda do árbitro.

35. Empate

Ah, Nina. Já não basta a capivara?

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Muitos caminhos levariam à vitória nessa posição, inclusive a linha que eu havia visualizado.

Por exemplo: 35.exd6 Te2 36.Be2 Te2 37.Tc7 Te3 38.Dh4 De8 39.Bf2, com a ameaça de d7.

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Sim. Sei disso. Tenho uma grave carência em um aspecto fundamental para o xadrez: o sangue frio. Vou tentar melhorar, mas por enquanto vou ficar curtindo a alegria de ter obtido tão significativo resultado frente a um Grande Mestre. 




quarta-feira, 3 de março de 2021

Uma bela partida do Mestre Alejandro

 Nesta semana tivemos a triste notícia do falecimento de Alejandro Terehoff Gonzalez, vítima da Covid-19.

Atuante enxadrista pessoense, sempre presente nos eventos promovidos pela Academia de Xadrez Caldas Viana e pelo Clube de Xadrez Miramar. Tive a oportunidade de jogar com ele em muitas dessas competições. Uma pessoa de fácil trato, simpático e querido por todos.

Alejandro recebendo o troféu de campeão

em um dos torneios do Clube Miramar.

Ao seu lado, Zé Mário e Dutra.

Entretanto, diante do tabuleiro, ele se tornava um guerreiro. Não tinha esse negócio de trato fácil, não! Era um jogador de ataque temível. Gostava de partir logo para as “vias de fato”. A “pancadaria” corria solta! Eu mesmo passei por vários apuros ao enfrentá-lo.

Como homenagem póstuma ao Mestre Alejandro, segue a bela partida na qual ele venceu o forte enxadrista Francisco Dantas, ex-campeão paraibano. Um exemplo do seu estilo arrojado de jogar.


Alejandro Terehoff Gonzalez – Francisco Dantas

IV Master Pessoense - João Pessoa (PB)

03/08/2020


https://share.chessbase.com/SharedGames/share/?p=TLl6805iDPbALlktvnWYxqRoW+nDfzDH2ShCxMP0YiMfsn7cvtu6beII9Vveb9gE


1.e4 c5 2.g3 Cc6 3.Bg2 Cf6 4.Cc3 d6 5.d3 e6 6.f4 Be7 7.Cf3 a6 8.0-0 0-0 9.e5

Sacrifício de peão para agilizar o desenvolvimento.

9.... dxe5 10.fxe5 Ce5 11.Ce5 Dd4+ 12.Rh1 De5 13.Bf4 Dd4 14.De2 Db4

Ou 14.... Dd8 15.Tae1, com as peças brancas ocupando excelentes posições.

15.Tab1 Bd7 16.Bc7

Cercando a dama negra. Por ser uma ameaça facilmente repelível, Dr. Fritz sugere outra possibilidade: 16.Bg5 Db6 17.Ce4 Cd5 18.Be7 Ce7 19.Df2 Dc7 20.Dc5, com igualdade.

16.... Tac8 17.Be5

Perdendo um tempo. Se a ideia original era cercar a dama, então era necessário jogar 17.Tf4, com a seguinte continuação: 17.... Tc7 18.Tb4 cxb4 19.Cd1 Tfc8, e as negras têm uma pequena vantagem por conta da iniciativa.

Assim, o lance jogado é inferior, pois a vantagem no desenvolvimento deixa de existir, e o sacrifício do peão já não oferece quaisquer compensações.

17.... Bc6 18.Bc6 Tc6 19.Tf4 Db6 20.Tbf1 Tcc8?

Então as negras se descuidam da defesa...

21.Tf6!!


… E o céu desaba sobre sua cabeça.

21.... gxf6

As negras se aferram ao material extra. Oferecia mais resistência: 21... Dc6+ 22.Ce4 Dd5 23.Dh5 Bd6 24.Tf7, com vantagem clara para as brancas.

22.Dg4 Rh8 23.Tf6

O bispo de “e5” é uma lança apontada para o coração das negras. A vantagem é decisiva.

23.... Dc6 24.Ce4 Dd5 25.Dg5

A ameaça do xeque descoberto obriga as negras a cederem material.

25.... Bd6 26.Bd6 Dg5 27.Cg5

O resto é esperneio...

27.... Tg8 28.h4 Tg6 29.Tf7 h6 30.Th7 Rg8 31.Be5 Tg5 32.Th8+ Rf7 33.hxg5 Tc6 34.g6+ Re7 35.Th7+ Pretas abandonam.

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Descanse em paz, Mestre Alejandro. 


segunda-feira, 1 de março de 2021

FPBX - Nota de Falecimento

Com tristeza, informamos o falecimento do médico neurologista, e talentoso enxadrista, de nacionalidade chilena e radicado em João Pessoa, Alejandro Terehoff Gonzales, vítima da Covid-19, que deixa esposa e dois filhos, todos também médicos. Aos seus familiares e amigos, a manifestação dos nossos sentimentos de profundo pesar.

Fernando Melo

Presidente da Federação Paraibana de Xadrez

Diretor da Confederação Brasileira de Xadrez