Antes de passar ao “causo” que nos ocupa, necessito me justificar perante os leitores do Blog Reino de Caissa. Meus textos, apesar de abordar assuntos técnicos referentes ao xadrez, têm características de crônicas, pois busco sempre vinculá-los, numa abordagem bem humorada, a algum episódio que testemunhei ou do qual fiz parte.
Os cronistas se inspiram em pequenos episódios do dia a dia, dando-lhes um significado especial, para escrever seus textos. Longe de mim querer me incluir numa tão nobre categoria de artistas. Mas, a exemplo deles, retiro do cotidiano do xadrez os motivos para meus escritos. E, convenhamos, a vida vem andando devagar... E com justa razão. Essa pandemia sem fim nos obriga a reduzir o ritmo a fim de conter a proliferação do vírus. Da mesma forma acontece com o xadrez presencial. Os torneios são raros, motivo pelo qual não venho publicando com a regularidade que gostaria.
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São raros, mas acontecem. Vez por outra, participo de algum. Apesar da forte oposição da família. Desta vez foi o Aberto do Brasil de Araruama, no Rio de Janeiro. Embarquei para lá no dia 01/06 e fiquei hospedado no hotel onde os jogos seriam realizados. No dia seguinte, o MN Joca Dedeus me mandou uma mensagem perguntando se eu aceitaria dividir o apartamento com um amigo dele, que tinha ficado sem acomodação. “Sem problema, Mestre”, respondi.
Meu companheiro de quarto, carioca boa praça, tinha uma rotina bem definida: logo que acordava, ligava para a namorada, da cama mesmo. No intervalo entre as duas rodadas do dia, outra ligação. E, finalmente, antes de dormir, tinham a última conversa.
Era um chameguinho de lá, outro chameguinho de cá; ciumezinho de lá, ciumezinho de cá; saudade do lado de lá, saudade do lado de cá... Coisas de casal apaixonado. Já habituado com o teor das conversas, eu dava pouca atenção ao que se passava. Mas uma frase dita em uma dessas ligações despertou minha atenção.
“ - Olha, você está chorando porque quer atrair a atenção dos olhares masculinos. Esse é o golpe da loira fatal!”, disse meu companheiro de quarto, creio que para descontrair.
“ Opa!!”, pensei. Aquilo me fez lembrar de algo de tinha ocorrido na partida que joguei naquela tarde.
Deixo a interpretação do que aconteceu a seu cargo, caro leitor.
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Fotografia com minha simpática adversária.
E antes que alguém pergunte de que se trata aquela garrafa que estava na outra mesa, já respondo: é uma garrafa de cerveja mesmo! A foto foi tirada no final da última rodada, e eu já estava comemorando minha participação em mais uma festa do xadrez brasileiro.
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Marcello Urquiza x Kim Garcia
Aberto do Brasil de Araruama
3ª rodada – 04/06/2021
Link da partida:
1.e4 c6 2.d4 d5 3.Cc3 dxe4 4.Cxe4 Bf5 5.Cg3 Bg6 6.h4 h6 7.Cf3 Cd7 8.h5 Bh7 9.Bd3 Bxd3 10.Dxd3 e6 11.Bf4 Da5+ 12.Bd2
Não nutro muita simpatia por essa linha da Caro Kann. Ela já foi exaustivamente estudada, e algumas de suas variantes teóricas chegam a ultrapassar vinte lances. Mas como não conhecia outra forma de enfrentá-la, então fui desse jeito mesmo.
12.... Bb4+
Uma novidade para mim.
13.c3 Be7 14.c4 Dc7 15.0-0-0 Cgf6 16.Rb1 0-0-0
Aqui o mais jogado é 16.... 0-0, o que me parece ser a razão do lance 12.... Bb4+, provocando o avanço do peão “c”. E então teríamos uma partida de roques opostos, com todas as complicações que envolvem esse tipo de posição.
17.Ce4 Cxe4 18.Dxe4 Cf6 19.De2 The8 20.Bc3 Cd7 21.Ce5 Tf8
Eu achava que após a troca dos cavalos, com 21.... Ce5 22.fxe5, as brancas teriam alguma vantagem devido ao maior espaço na ala do rei. Mas Dr. Fritz não concorda com esse entendimento e afirma que a posição estaria igualada.
O lance jogado na partida é inferior, pois dá oportunidade às brancas de fazer a ruptura central, com graves consequências para as negras.
22.d5 Cc5
As negras não tinham boas opções. Por exemplo:
a) Se 22.... exd5, eu estava pensando em jogar 23.Cxd7 Dxd7 24.Bxg7 ou 23.Cc6 Dxc6 24.Dxe7, com vantagem em ambos os casos.
b) Com 22.... cxd5, as negras exporiam seu rei perigosamente após 23.cxd5 exd5 24.Td5.
23.dxc6
Dirigi minha atenção para o peão de “c6”. Nem cheguei a considerar 23.dxe6, pois entendi que o lance jogado seria suficiente para obter vantagem.
Preciso fazer um “mea-culpa”: estávamos numa posição crítica da partida, e nenhuma possibilidade poderia ter sido descartada.
Não que 23.dxc6 seja é um mal lance, mas a melhor opção mesmo era capturar o peão de “e”. Por exemplo:
23.dxe6 fxe6 (se 23.... Cxe6, segue 24.Cxf7) 24.Cg6 Txd1+ (24.... Tg8 25.b4) 25.Txd1 Td8 26.Bxg7, com vantagem decisiva.
23.... bxc6 24.Df3 Bf6
24.... Rb7 não resolveria o problema. Por exemplo: 25.Cxf7 Txd1+ 26.Txd1, e se 26.... Bg5, então 27.Cd6+.
25.Txd8+
Não quis capturar o peão de “c6” de imediato para não comprometer minha estrutura de peões, depois de 25.Cxc6 Txd1+ 26.Txd1 Bxc3 27.bxc3. Mas Dr. Fritz avalia que essa posição é claramente vantajosa para as brancas.
Eu quis ganhar o peão sem ceder nada em troca. O GM Jonathan Rowson escreveu um livro chamado “Los siete pecados capitales del ajedrez”. Recomendo. Mas só que ele não abordou o pecado da avareza...
Aliás, sobre avareza, você pode ler o seguinte texto:
https://reinodecaissa.blogspot.com/2020/03/desventuras-de-um-capivara-i-o-pecado.html
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Foi aí que eu percebi que minha adversária estava mordiscando as unhas.
25.... Txd8
O momento tão aguardado: o ganho de um peão com 26.Cxc6, ademais de expor do rei das negras.
Fiz menção de tocar no cavalo. Mas recuei. Precisava dar uma última checada na posição...
Minha adversária continuava a mordiscar as unhas, agora com um jeito um tanto desalentado. Isso só fez aumentar a confiança de que estava no caminho certo.
Como não observei nenhuma intercorrência (para usar uma palavra da moda), decidi capturar o peão... Vamos que vamos!
26.Cxc6
Mas …
26.... Td3!
“Hã??” …
… “Ui!”
Devo ter feito uma expressão parecida com a que Carlsen fez quando levou aquela pancada de Supi.
“ Perdi meu cavalinho...”
E foi aquele desespero para tentar encontrar uma forma de minimizar o prejuízo. 27.Ba5 era a melhor alternativa. Por exemplo:
Com 27.Ba5 Txf3 28.Bxc7 Rxc7 29.gxf3 Rxc6, e talvez eu tivesse alguma chance de lutar por conta dos peões da ala da dama. Mas percebi que as pretas poderiam jogar 28.... Txf2, e o final resultante me pareceu sem esperança.
Então tomei uma medida compatível como meu desespero, apelando para um eventual xeque perpétuo.
27.Cxa7+ Dxa7 28.Dc6+ Dc7 29.Da8+ Rd7 30.Bxf6 gxf6 31.Df8
As brancas estão perdidas. Além da desvantagem material, seu rei está sozinho frente a três poderosas peças. Bastaria organizar o ataque. Dr. Fritz sugeriu a seguinte linha: 31.... De5 32.Dxf7+ Rc6 33.De8+ Rc7 34.Db5 Df5 35.Ra1 Dxf2.
31.... Dd6
Mas as pretas preferiram materializar sua vantagem de forma mais tranquila.
32.Dxh6
Ainda fruto do desespero. 32.Dxd6+ era a melhor alternativa.
32.... Td2
As brancas não encontraram o caminho mais fácil para a vitória. Com 32.... Ca4, o ataque seria irresistível.
33.De3 Td3
Era melhor 33.... Td1+ 34.Txd1 Dxd1 35.Dc1 Dxh5, com vantagem, apesar de que as brancas teriam algumas chances de complicar o jogo.
34.Dc1
A essa altura, com o tempo se esgotando para ambos os jogadores, os erros se sucediam. Ademais, a posição era muito complexa. Eu estava pensando na possibilidade de trocar minha dama pela torre e pelo cavalo, e avançar o peão de “h” até “h7”, deixando a dama negra limitada a impedir h8=D.
Mas o Dr. Fritz diz que a melhor defesa era 34.De2!, pois se 34.... Td2, a dama retornaria para “e3”. E se as negras tentassem incrementar o ataque com 34.... Ca4, então 35.Dc2, obrigando o cavalo a voltar.
A posição estaria melhor para as negras, mas as brancas teriam amplas possibilidades de defesa.
34.... Ce4
E as negras perderam o foco do ataque devido à sua preocupação com o peão “h”.
Com 34.... Td2, seguido de ...Ca4, teria acontecido a troca da dama pela torre e pelo cavalo. Vejamos o que Dr. Fritz diz a respeito disso: 34.... Td2 35.h6 Ca4 36.Ra1 Cxb2 37.Dxb2 Txb2 38.Rxb2 Db4+ 39.Ra1 Dc3+ 40.Rb1 Dd3+ 41.Rb2 Dh7, e o peão não conseguiria chegar a “h7”, com vantagem decisiva para as negras.
Mas como ganhar? O rei não tem tempo de ir para “h8”, já que os peões da ala da dama avançariam. Quem se propõe a formular um plano?
35.h6 Cg5
Com 35.... Cxf2 36.h7 Cxh1 37.h8=D Td1 38.Dxh1 Txh1 39.Dxh1 Dxd3+, o final resultante estaria empatado.
36.Rc2 Ch7
Último erro. Agora as pretas estão perdidas. Com a simplificação que se segue, o cavalo ficará retido em “h7”, e o rei preto não poderá conter o avanço dos peões da ala da dama.
Com 36.... Dd4 a partida estaria igualada. Recorro a Dr. Fritz mais uma vez (aliás, ele foi imprescindível para a análise dessa partida): 36.... Dd4 37.c5 De4 38.Td1 Txd1+ 39.Rxd1 Dxg2 40.Dd2+ Re8 41.Dd6, com provável empate por xeque perpétuo.
37.Td1 Txd1 38.Dxd1 Dxd1+ 39.Rxd1 f5 40.b4 e5 41.a4 Rc6 42.a5 e4 43.g3 f6 44.b5+
As pretas abandonam.
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Judith Polgar certa vez disse que o xadrez tem um importante componente psicológico. Que seria difícil para ela vencer um computador, já que não seria possível confundi-lo.
Sabemos que as reações de nossos adversários indicam como eles estão se sentindo em determinado momento do jogo. Suas expressões corporais, expressões faciais, grunhidos, forma de fazer um lance, etc. Tudo isso são indicadores.
Mas também existem os gestos “teatrais”. O Professor Antonio Dutra, de João Pessoa, se tornou conhecido entre os amigos como o “Mestre das Táticas” porque, jogando uma partida, ele executou um lance e de imediato levou as mãos à cabeça, dando a impressão de que tinha cometido um erro crasso. O gestual passou credibilidade para seu adversário, que aceitou de bom grado o peão que ficou pendurado... Perdeu a partida, é claro.
E isso nos impõe mais um desafio: identificar se as sinalizações são autênticas ou se se tratam apenas de “cena”.
Não sei dizer se o mordiscar de unhas de minha adversária foi “cenográfico” ou apenas um cacoete sem qualquer vinculação com a partida. Mas o certo é que ele me deu uma falsa sensação de segurança.
Isso posto. Já alertei aos leitores que é necessário ter muito cuidado quando formos navegar pelos mares tormentosos das linhas táticas.
E se sua adversária for uma moça bonita mordiscando as unhas, com um jeito meio largado, então redobrem a atenção!
Cuidado com o canto das sereias!
Quem avisa, amigo é...
Parabéns pela ótima estória! Excelente final de partida.
ResponderExcluirQuem nunca levou uma "rasteira" que atire a primeira pedra!
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