Em 1977, o GM Paul Benko
esteve no Brasil para dar uma série de simultâneas. Conta-se que,
numa delas, o promotor do evento se dirigiu ao Grande Mestre e,
apontando para um garoto de uns 15 anos de idade, disse
categoricamente: “ - Você vai ganhar de todos, menos desse aqui!”.
Dito e feito. Quando
restou apenas uma partida, Benko pediu um relógio, colocou dez
minutos para cada e, “tête-à-tête”, continuou o jogo. O menino
colocou pressão, mas, inferior no tempo, optou por empatar por
repetição de jogadas.
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Essa é uma história
verídica. A simultânea foi jogada em João Pessoa (PB). Fernando
Melo foi o seu promotor e o garoto era Francisco Cavalcanti, que
viria a se tornar um destacado Mestre Fide. Melo a conta, sempre que
tem oportunidade.
O menino Francisco
Cavalcanti e o GM Paul Benko
Chiquinho, como é
carinhosamente chamado por seus conterrâneos, possui um currículo
respeitável. Tem seis títulos de campeão paraibano, já beliscou
um título pernambucano absoluto, em 2011, e venceu vários torneios
do circuito de abertos do Brasil. Em 1988, venceu a semifinal do
Campeonato Brasileiro, em Goiânia (GO). O título de Mestre Fide foi
conquistado em 2003, no Open Internacional de Nice, na França.
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Foi colaborador do
boletim “XADREZ NOTÍCIAS”, cujo
editor era, sempre ele, Fernando Melo. Êh, Mestre Fernando, o xadrez
brasileiro lhe tem uma dívida de gratidão!
Na
edição de agosto/1990, Mestre Chiquinho publicou um artigo, no
qual comentou uma partida que jogou contra o Mestre Internacional
Alexandru Segal, pela Semifinal do Brasileiro de 1989, em João
Pessoa.
Reproduzo
a matéria logo abaixo. Vale a pena conferi-la. As notas foram
incluídas por mim, baseadas em observações do Dr. Fritz.
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QUESTÃO DE TÉCNICA
Um dos dilemas mais
difíceis para o principiante é a diferença entre tática e
estratégia, e a sua valorização.
Quem supera quem?
Quando o Xadrez começou a expandir-se pelo mundo, os admiradores
deste batizaram essa época de “Era Romântica”, pela facilidade
de fazer combinações táticas com entrega de material.
Os princípios
estratégicos de posição quase não existiam para o enxadrista da
época. Ficava difícil aprofundar-se nestes princípios, pois
valorizava-se a tática como um todo. Só depois que William Steinitz
proclamou-se campeão mundial, com grande contribuição teórica de
sua parte, o Xadrez deu um salto importante para a evolução
estratégica.
Nos dias de hoje, onde
os modernos meios de comunicação são fatores que contribuem em
máxima para o progresso dos enxadristas, facilitando aos dedicados,
através destes meios, a aprofundar-se nos princípios clássicos do
Xadrez.
Atualmente, uma
partida bem jogada baseia-se nesses dois dilemas funcionando em
harmonia conjunta, podendo-se afirmar que, sem estratégia, não há
tática vencedora. Lance por lance, desde seu início, a partida
apresenta vários detalhes táticos, porém esses detalhes aparecem
por trás de um vasto conhecimento teórico e estratégico.
A teoria mede o
conhecimento de aberturas, estudo de posições, meio jogo e final.
Já a estratégia trabalha nos conceitos fundamentais, como
conformação de peões, posicionamento das figuras, valorização
dos materiais e estudos geométricos, etc.
Para surgir um
arremate tático romântico, é preciso passar por todos esses
conhecimentos, pois sempre estes arremates aparecem facilmente com um
trabalho de posição bem realizado em seus devidos fins.
Em 1989, na semifinal
do Campeonato Brasileiro Absoluto realizado aqui em João Pessoa,
joguei uma partida frente ao MI Alexandru Segal com estes temas
citados.
Vejamos a partida
comentada:
F. CAVACALCANTI -
A. SEGAL
Semifinal do
Brasileiro
Hotel Tambaú – João
Pessoa – 1989
Defesa Índia Antiga
1.d4 Cf6 2.c4 c5
3.d5 e5 4.Cc3 d6 5.e4 Be7 6.Cf3 0-0 7.Be2 Cbd7 8.0-0 a6
9.a3 Ce8 10.Ce1 g6 11.Cd3 Cg7 12.b4 b6 13.a4 f5 14.a5 bxa5
15.bxc5 dxc5
Com
o debilitamento do esqueleto de peões negros e a pequena vantagem de
espaço, as brancas têm o domínio estratégico.
Nota – A debilidade da estrutura de peões negros teve uma causa bem
definida: o lance 13.... f5, que permitiu o avanço do peão “a”.
Teria sido melhor ter consolidado a ala da dama, jogando 13.... a5.
Claro que isso implicaria em fazer concessões, como a debilidade de
“b5”, mas os danos seriam menores.
16.Da4 Cb6 17.Da5
Cc4 18.Da2!? Cd6 19.Ce5
Apesar
de não ter cometido erro grave, as pretas encontram-se numa situação
difícil, à causa do ponto c6, que está fraco. Se 19.... Bb7
20.Cc4!, permanecendo as debilidades.
19.... fxe4
Se 19.... Bf6 20.Cc6
De8 21.e5! Be5 22.Ce5 De5 23.Ca4, com clara vantagem branca.
20.Cc6 De8
21.Ca4!
Com
esse lance, as brancas dão sequência ao plano, ganhando qualidade.
Porém, as pretas têm contrajogo na ala do rei.
21.... Bf6 22.Tb1
Cb5! 23.Bb2 Cd4
24.Bd4 cxd4 25.Cb6 Bf5 26.Ca8 Da8 27.Bc4!? h5 28.Tbd1 d3
29.f3!
Aqui poderia jogar
29.Da6, porém eu esperava mais desta posição.
29.... exf3
30.gxf3 Bh3 31.Tfe1
A partida agora
caminha para tática aguda, onde os temas estratégicos favorecem ao
branco pela vantagem material e colocação das figuras.
31.... Db7 32.Tb1
Dd7 33.Bd3 Dd6
34.Dc4! Bg5 35.Tb7!!
A
jogada mais profunda, pois qualifica a superioridade, alinhava a
melhor colocação das figuras, onde origina-se as sequências
táticas. Tentar defender o peão de f com 35.Be4, além de permitir
a fraqueza do ponto f4, bloqueia a coluna “e”.
Nota – As duas
exclamações atribuídas pelo autor, refletem o seu entusiasmo com a
posição. Também já passei por esse dilema: ganhar simples ou
ganhar bonito? Saliente-se que as brancas conduziram o jogo de forma
exemplar, mantendo uma consistente vantagem até esse momento. Com
35.Tb6 Rh7 36.Ta6, teriam obtido uma vitória tranquila. Com o
lance jogado, a posição tende a ficar equilibrada.
35.... Tf3
As pretas são
forçadas a procurar contra-ataque, que parece bem idealizado com a
aproximação das suas forças sobre o rei branco.
36.Ce7+
Aqui
está a questão: se 36.... Rh7 37.Cg6 Tg3+ 38.Rf2 Tg2+ 39.Rf3
Df6+ (se 39.... Dh2 40.Cf4+ Rg8 única 41.Tb8+ Rf7 42.Dc7+
Rf6 43.Tf8 mate. Ou 39.... Th2 40.Ce5+ Rg8 41.Rg3! Decide) 40.Cf4+ Rh6 única 41.Te6! Be6 42.Rg2 Bf4 (42... Bg4 43.h3!)
43.dxe6 Dg5 44.Rf1 Be3 45.Re2 Dg1 46.Dh4 Bg5 única
47.Dg3 Dc1 48.h4! Dd2+ 49.Rf1 Dd1+ 50.Rg2 e Rh3 decide.
Nota - Essa é a
posição crítica da partida. As brancas, ainda acreditando possuir
vantagem, partem para a definição do jogo, usando as “rotas
tormentosas” das linhas táticas. Cuidado! Muito cuidado. Tenho
avisado. Esses são mares traiçoeiros.
Mestre Chiquinho tomou sua decisão com base nessa
extensa análise. Mas ela tem um furo. As brancas levariam mate! A
título de exercício, dê mais uma olhada nela, e tente achar em que
momento isso aconteceria. Só não vale consultar Dr. Fritz, ok?
Já apurado no tempo, o MI Segal não percebeu.
36.... Be7
37.T1e7 Tg3+ 38.Rf2 Df6+
Se
38.... Tg2+ 39.Re3 e o preto já pode abandonar.
39.Rg3 h4 40.Dh4
Ch5+
A
última rasteira, pois se 41.Rh3?? Df3+ 42.Dg3 Cf4+ 43.Rh4 Dh5
mate.
41.Dh5 e a bandeira
negra sumiu.
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Conseguiu achar o furo?
Olhe o diagrama mais
uma vez e acompanhe a seguinte linha: 36.... Rh7 37.Cg6 Tg3+
38.Rf2 Tg2+ 39.Rf3. O autor considerou as opções de 39.... Df6+,
39.... Dh2 e 39.... Th2. Porém, tem outra alternativa. Qual?
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Enquanto você pensa, é
necessário fazer um esclarecimento, pois alguém pode estar se
perguntando: por que uma coluna
chamada de “O Voo do Capivara” publica um texto falando sobre um
Mestre Fide? Veja bem, diligente leitor, esse é um espaço
democrático. Onde cabe um capivara, haverá sempre de caber um
mestre.
Aliás, o único
capivara, que bate o ponto aqui, sou eu. Pronto, falei!
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Segue a solução:
39.... Tf2+!, pois se
40.Rf2 Dh2+, seguindo de Dg2 mate. Se 40.Re4, as pretas teriam
40.... Tf4+ ou 40.... Df6, com mate inevitável.