Você tem razão, meu
incrédulo leitor, esse gambito não existe. A história, sim; mas o
gambito, não. Aliás, eu sou uma lástima em teoria de abertura.
Reconheço a minha incapacidade em desenvolver tais estudos. Porém só deixarei para falar do tal gambito mais adiante. Então
mantenha-se sereno, como a simpática capivara da foto, enquanto
tento encher linguiça com outros assuntos.
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Teve um período em que
priorizei o xadrez por correspondência. Foi numa época em que a
internet ainda não era popular, e que os programas de computadores
eram adversários fracos. Portanto, já faz um tempinho...
Foi quando vim trabalhar
no interior. Início de carreira, dinheiro curto, distância para os
grandes centros, torneios com rodadas no meio da semana. Tudo isso
dificultava a minha participação em competições presenciais.
Depois vieram a esposa e os filhos... então a coisa complicou de
vez.
Dessa forma, fui me
envolvendo cada vez mais com o xadrez postal.
As partidas duravam
meses. Era uma ida e vinda interminável de aerogramas. Eu comprava
blocos dessas cartas pré-franqueadas. E ainda tínhamos de guardar
as que recebíamos até o final do respectivo torneio. As pastas ficavam
abarrotadas.
Havia pouca interação
entre os jogadores, salvo uma breve apresentação no primeiro
contato. O foco era o xadrez, principalmente para aqueles que jogavam
muitos torneios, como era o meu caso. Alguns de nós até
providenciavam a confecção de carimbos, seja para a transmissão
dos lances, ou até para que não precisássemos escrever nosso
próprio endereço. Tudo para racionalizar a atividade.
Mas alguns também
gostavam de socializar. Eram raros, mas existiam. Lembro-me de um
jogador de Goiânia (GO). O cidadão escrevia uma lauda equivalente a
uma folha de papel ofício! Até tentei retribuir. Mas responder
aquela carta era mais difícil do que analisar os vários lances que
me chegavam todos os dias. Então fui diminuindo o tamanho da minha
missiva, até que ele se chateou e disse que, em face da pouca
atenção que eu estava dando aos seus escritos, a partir daquele
momento se limitaria a jogar xadrez. Ufa! Foi um alívio.
Mas nada substituía as
emoções proporcionadas pelo xadrez presencial. Então eu buscava
suprir essa carência com a participação em mais e mais torneios
postais. Eram muitos lances que tinha de responder diariamente.
Chegava do trabalho, brincava um pouco com os meninos, dava outro
tanto de atenção à esposa, e logo ia analisar os jogos, até altas
horas.
Nessa balada, consegui me
classificar para as semifinais dos dois mais importantes torneios do
Clube de Xadrez Epistolar Brasileiro (CXEB): o Campeonato Brasileiro
e a Taça Brasil. E estava indo até bem. As partidas já estavam no
meio-jogo, e eu vislumbrava a possibilidade de me classificar para a
final de pelo menos um deles.
Mas eu não me limitava a
jogar apenas esses. Ainda tinham uns torneios por categoria, outros
temáticos, e até um internacional. Então, um dia, travei. Não
conseguia responder mais nada. Quem já jogou “pinball”, sabe que
não se deve sacudir a máquina com muita violência, pois ela pode
dar “tilt” e travar. E foi assim: deu “tilt” no meu juízo.
Naquele momento,
reconheci que não já era mais possível continuar com o xadrez.
Peguei meus livros, materiais, planilhas e tudo o mais relacionado ao
jogo e coloquei numa caixa que, tal qual uma cápsula do tempo, só
veio a ser aberta vinte e sete anos depois.
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A história do gambito
começou quando, em novembro de 1990, teve início um torneio da
Categoria Especial (TC-E) do CXEB. Dentre os meus adversários,
constava o nome do Mestre Fernando Melo. Aliás, a partida que joguei
com ele, naquela ocasião, é uma das minhas preferidas. Precisei de
muita paciência para romper a sólida posição defensiva que ele
montou.
Melo era um dos
correspondentes que gostavam de interagir, mas de uma forma moderada. Certo dia, ele me informou
que estava editando um boletim que cantava loas às virtudes da
Defesa Francesa, da qual era aficionado. Perguntou se eu gostaria de
recebê-lo. Aceitei de bom grado, pois aquela defesa também tinha
sido a minha preferida por muito tempo.
Numa das edições, ele
convidou os assinantes que estivessem jogando alguma linha específica
da Francesa, com bons resultados, para compartilhá-la com os demais leitores.
Mexendo nos meus velhos
Informadores, eu havia encontrado uma interessante linha da Variante
Tarrasch. Já a tinha usado três vezes, com cem por cento de
aproveitamento. Fiz algumas análises e mandei para Fernando. Talvez ele aproveitasse alguma das partidas...
Porém ele fez mais...
Publicou uma matéria de página inteira com todas as partidas, duas
deles comentadas, com o título de “O Gambito Urquiza”! (*)
Ora, o tal gambito não é meu coisíssima nenhuma. Mas tomei parte de uma história que carrego com muito carinho. E que bom que o xadrez nos proporciona
esses momentos.
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Para aqueles que estão
curiosos, segue uma das partidas.
Marcello Urquiza x Ivan
Marques da Silva
IX Campeonato Brasileiro
Individual – Fase Preliminar
15/03/1990 a 09/11/1990
https://share.chessbase.com/SharedGames/share/?p=ZKDzot0SG/USK+jAIEOB7H8AFtoa93lR5yMKA6zj7BxvsmO3qCaqyvzXcDtUUJTT
1.e4 e6 2.d4 d5
3.Cd2 Cf6 4.e5 Cfd7 5.Bd3 c5 6.c3 Cc6 7.Ce2 cxd4 8.cxd4
Db6 9.Cf3 f6 10.0-0
Eis o gambito: sacrifício de peão para tentar um ataque ao rei preto, que permanece no centro do tabuleiro.
A
linha mais jogada é 10.exf6 Cf6 11.0-0 Bd6 12.Cc3 0-0, etc.
10.... fxe5 11.dxe5
Cde5
Numa
das partidas citadas no texto, meu adversário recusou a oferta, mas perdeu rapidamente depois de 11.... Be7 12.Cf4 Cc5
13.Be3 Db2?! 14.Bc5 Bc5 15.Tb1 Da3 16.Cg5 Re7 17.Dh5 Ce5
18.C5e6 Cd3 19.Dg5+ Re8 20.Dd8+ As pretas abandonaram (Marcello
Urquiza x Otávio Fonseca – correspondência - 1989).
12.Ce5 Ce5 13.Cf4
Esse
é o lance que “justifica” o sacrifício. A
possibilidade do xeque em h5 causa algum desconforto às pretas, mas
as chances são iguais frente a uma defesa correta.
A
outra possibilidade é 13.Be3, pois as pretas não podem tomar o peão
de b2.
13.... Cd3 14.Cd3
Bd6
Na outra partida, as pretas jogaram 14.... g6 15.Be3 d5?!
16.Da4+?! Bd7 17.Dd4 Dd4 18.Bd4, com o jogo um pouco melhor para
as brancas. Mas 16.Ce5! teria dado uma grande vantagem.
15.Dh5+ g6 16.Dh6
Bf8
Teria
sido melhor 16.... Dd4 17.Td1 Dg4 18.Te1 Dh5, com jogo igual.
17.Df4 Bg7 18.Be3
Era
mais forte 18.Ce5 Dc7 19.Te1 a6 20.b3 Tf8 21.Dg3 Tf5 22.Bb2,
com jogo melhor. Mas as brancas ainda mantiveram uma leve vantagem.
18.... Da6 19.Tfd1
Bd7
As
pretas necessitavam resolver o problema do rei no centro do
tabuleiro com 19.... Dc4 20.Dd6 Da6 21.Db4 Dc4 22.Dd2 0-0, embora as brancas continuassem com o jogo melhor.
20.Cc5 Dc6 21.Tac1
Bb2?
Perdendo a última
oportunidade de rocar. 21.... e5 22.Db4 0-0 23.Db3,
apesar de que ainda estariam sob forte pressão.
Com o rei no centro e
várias linhas abertas, as negras ficaram perdidas. Veremos como as
brancas realizaram uma série de manobras, principalmente com a dama,
que culminaram com a invasão da posição.
22.Cd7 Dd7 23.Tc7
g5 24.Dg3 Da4 25.Df3 Bf6 26.Dh5+ Rd8 27.Tdc1 De8 28.Dg5
Tf8
28....
Bg5 29.Bg5+ De7, não traria alívio.
29.Dg3 Tf7
29....
e5 30.Dg4.
30.Dd6+ Pretas
abandonaram
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(*) Na planilha de uma
das partidas citadas no texto, consta uma anotação feita à mão: “Ataque
Urquiza”. Então fiquei em dúvida se o titulo da matéria que
Fernando publicou era “Gambito” ou “Ataque”. Usei gambito
neste texto, pois foi o primeiro termo que me veio à memória.