sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

O infarto

Em outro dia contei sobre como abandonei o xadrez. Agora, chegou a vez de falar sobre a minha volta.

“ - Ah! Já sei! Você infartou e o doutor lhe recomendou atividades contemplativas.” Pondera um leitor mais apressado.

Deus me livre! Mesmo porque o xadrez competitivo não é muito adequado para quem tem o coração fraco. A questão do infarto será abordada no momento oportuno. Falemos primeiro sobre o retorno aos tabuleiros.

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Foi assim: à medida em que se aproximava o momento de me aposentar, eu avaliava a possibilidade de voltar a jogar. Então, quando finalmente “pendurei a chuteiras”, resolvi que … não voltaria! Temia uma recaída, pois, na juventude, estive “um tanto obcecado” pelo jogo.

Então fui procurar o que fazer para tentar afastar aquela tentação.

Fiz um curso de cervejeiro caseiro. Agora sim! Seria um mestre, só que um Mestre Cervejeiro...

Comprei um violão e um cavaquinho. Ganhei um alaúde e herdei um violino... Não teria como escapar! Finalmente aprenderia a tocar um instrumento musical.

E para não ficar vivendo só de brisa, fui trabalhar na empresa de minha filha.

Passaram-se dois anos, quando, em 2017, surgiu a oportunidade de comprar um pequeno apartamento na agradabilíssima João Pessoa. Doravante iria dividir meu tempo entre a vida pacata em Macaparana, no interior de Pernambuco, e a capital da Paraíba. Praia, barzinhos, shoppings, cinema, espetáculos musicais... uma maravilha!

Tudo ia bem, até que um dia bateu a curiosidade de saber como andava o xadrez em Jampa. Fui lá no Google.

“ - Xadrez João Pessoa”.

Ele respondeu:

“ - Inscrições abertas para o Memorial Bobby Fischer...”

Eita! A tentação ressurgiu com força total. Dessa vez, não tive forças para resistir. “Não faria mal participar, afinal o xadrez também poderia fazer parte do pacote de diversões que a cidade grande oferecia”. Essa foi a desculpa que encontrei para me justificar.

“Leve peças e relógio”, alertava o regulamento do torneio. Comprei um jogo de peças. E lá fui eu, na primeira rodada, com as mãos frias, ansiedade nas alturas, peças novinhas, um relógio analógico Cronos do tamanho de um tijolo e vagas lembranças de três décadas atrás.

Reconheço que sou um capivara, mas de uma categoria muito especial. Como você pode perceber, sou um capivara pré-histórico! Um Neochoerus sulcidens, o ancestral dos capivaras modernos. Pré-engine, pré-internet, pré-sistema London, pré-Carlsen...

E foi assim que Caíssa, numa missão arqueológica, me resgatou.

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O autor enfrentando o MF Diogo Guimarães na 4ª rodada

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Vou me abster de publicar a partida completa, para que possamos ir direto ao ponto que nos interessa: o infarto.

Depois de duas vitórias seguidas (!), na terceira rodada fui emparceirado com Mário Fiaes, forte jogador da Bahia.


Marcello Urquiza x Mário Henrique Fiaes

IX Memorial Bobby Fischer.

João Pessoa – 17/03/2018


Link da partida:

https://share.chessbase.com/SharedGames/share/?p=sYc7CU/N0GpjxPmI5eREOw4bfhWz8PW08TMjIquXpbA9jc9cCbd/FvrNctPpqxGU

Depois de algumas escaramuças no centro do tabuleiro, a partida chegou à posição do diagrama. Dr. Fritz avalia que as chances estavam iguais.


32.Be2

As brancas buscavam reagrupar suas forças.

32.... Tc3 33.Bd3 Cd7 34.Te2

Agora, ameaçavam consolidar a posição, bloqueando a estrutura de peões das negras.

34.... Dd6?

Mas as pretas decidiram fazer uma defesa passiva do peão e, para piorar, escolheram a pior opção.

Menos mal teria sido 34.... Tc6. Mas daria a chance de as brancas bloquearem o centro. Por exemplo: 34..... Tc6 35.Dg1 Te7 36.Dd4 Td6 37.Tbe1, com jogo um pouco melhor para as brancas.

Então 34.... e5 era imprescindível, com igualdade. Uma possível linha seria: 34.... e5 35.fxe5 Ce5 36.b5 Cd3 37.Te8+ Tf8 38.Tf8+ Rf8 39.cxd3 axb5 40.Df3+ Df7 41.Df7+ Rf7 42.Tb5 Td3 43.Tb7+ , resultando em um final de torres empatado.

35.De1

Ataque duplo.

35.... Tc6 36.b5 axb5 37.Bb5 Tc5?

Outro erro, dando oportunidade para um rápido desenlace. Com 37.... Tc8, para defender a 8ª linha, as pretas poderiam oferecer maior resistência, embora a posição ainda fosse desesperadora.

38.Te6 Dc7 39.Bd7 Dd7 40.Te8+ Tf8 41.Te7 Dg4 42.Tbb7 Tc2


Seja sincero, prezado leitor, você não acha que um dos momentos mais prazerosos do xadrez é quando damos um lance inesperado e nosso adversário toma aquele susto?

43.De6+!

Mas não foi aqui que meu oponente se assustou, embora ele também não esperasse esse lance. Percebi sua expressão de alívio. Creio que ele temia 43.Tg7+ Dg7 44.Tg7+ Rg7, com vantagem decisiva para as brancas.

43.... De6 44.Tg7+

Mate em dois lances! Foi aqui. Meu adversário teve um baita sobressalto. Não tinha previsto esse lance. Mas, passado o impacto inicial, ele não se fez de rogado e continuou a partida...

44.... Rh8 45.Th7+ Rg8 46.Tbg7++

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Jogo terminado, um dos integrantes da delegação baiana se aproximou e disse:

“ - Olha, seu adversário tem essa postura. Ele vai até o fim. Diz que o oponente pode ter um infarto, aí então ele ganharia a partida pelo tempo.”

Cruz credo!! Ainda bem que só soube disso depois da rodada. Vai que eu estivesse em um dia sugestionável... olha a bronca!

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Sobre o que eu vinha fazendo antes de voltar a jogar? Bem, pedi demissão à minha filha; há mais de um ano que não faço cerveja; e o violão está ali num canto, empoeirando. Todos os dias ele me lança um olhar melancólico.

“ - Ah! Então você teve uma recaída, e voltou a ficar obcecado pelo xadrez.”

Não, de forma alguma. Estou tendo a oportunidade de fazer o que gosto. E isso é um grande privilégio.


 

7 comentários:

  1. Realmente você escapou! O infarto é ficar olhando direto para o adversário. Como você tem o costume de jogar de cabeça baixa, escapou a essa alternativa. Olha Marcello, fiquei curioso, a primeira parada(que não foi a cardíaca) foi devido a essa obsessão? Por favor me responda, não acompanhei essa crônica. Obrigado 🙏🏻

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  2. Fala, Zirpoli!
    Segue o link da matéria:
    https://reinodecaissa.blogspot.com/2020/10/o-voo-do-capivara-historia-do-gambito.html
    Marcello

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  3. Curiosamente, ontem, conversava com meu pai a respeito disso: envelhecer permite focar no que gostamos, pois a definição de trabalho é fazermos algo que não faríamos caso não estivéssemos sendo pagos pra isto. Depois da aposentadoria, é natural que foquemos nos nossos interesses mais latentes. Que bom que você voltou pro xadrez, Urquiza! Seus textos são ótimos! Continue!

    Abraço

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  4. Mais um texto primoroso do nosso Urquiza! Parabéns, mestre!

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  5. Que blog maravilhoso, continue com o trabalho!
    Dennis

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