sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Desventuras de um Capivara – Um golpe de misericórdia

Como foi seu primeiro contato com o xadrez? Alguns responderão que foi na escola; outros, que aprenderam com o pai; mais alguns, vendo outras pessoas jogarem. São inúmeros, os desígnios do destino.

O meu foi engraçado, literalmente. Pois, foi através de Renato Aragão e sua trupe. Em 1972, Os Trapalhões criaram um quadro para parodiar as polêmicas que Bobby Fischer provocava durante o match contra Spasski. Além de achar graça, aquilo despertou minha curiosidade. Que jogo era aquele? Tinha 11 anos e já gostava de jogar damas com meu pai.

Mas aquela semente teve de ficar adormecida, pois, morando em Bom Conselho, no interior de Pernambuco, não conhecia ninguém que jogasse. Até que, lendo um livro, encontrei um encarte que anunciava uma promoção. Quem comprasse o item anunciado, ganharia um jogo de xadrez. Não tive dúvidas. E, alguns dias depois, recebi a encomenda. Um pequeno tabuleiro em papelão, com as imagens das peças impressas em círculos também de papelão e, para completar, um manual com as regras do jogo. Para os olhos apaixonados daquele garoto, eles pareciam lindos!

E lá fui eu, sozinho, tentar decifrar aquele emaranhado de informações. Mas, sem nenhuma interação com outros jogadores, o progresso era limitado.

Certo dia, folheando a revista Manchete, da qual minha mãe era assinante, me deparei com uma coluna de xadrez, escrita por Valério Andrade. Que grande achado! De imediato, resgatei todas as edições anteriores ainda guardadas. Cortei-as e colei-as num caderno. Esse foi o meu primeiro contato com o xadrez magistral. Depois, fui acrescentando colunas de outros autores, como as de Herman Claudius, Alexandru Segal e de Herbert Carvalho. Ainda guardo esse caderno, com muito carinho. Quem nunca teve um?


Através de uma dessas colunas, descobri a existência do Clube de Xadrez Epistolar Brasileiro – CXEB. E, assim, passei, finalmente, a jogar xadrez. Só que por correspondência. Mas aí cabe outro “causo”, que deixarei para contar depois.

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Em 1977, meus pais resolveram nos mandar para Recife. Eu e meu irmão mais velho. Estávamos no ensino médio e precisávamos nos preparar para o vestibular. Fomos matriculados no tradicional Colégio Nóbrega.

Por obra e graça de Caíssa, era o mesmo colégio onde estudava Flavio Daher. Jovem e talentoso jogador pernambucano. Tinha participado da final do campeonato brasileiro de 1976, em João Pessoa (PB).

Através dele, fui apresentado à comunidade enxadrística local e passei a participar ativamente dos eventos organizados no Clube de Xadrez do Recife. Tenho na memória, e nas planilhas arquivadas, os nomes de muitos com os quais tive a satisfação de conviver.

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Em 1978, integrei a equipe que jogaria os Jogos Estudantis Brasileiros, em Natal (RN). O time também contava com Flávio Daher. Não me recordo dos nomes dos demais jogadores. Se você, caro leitor, for um deles, faça um comentário e me ajude a recompor esse quadro.

Tinha um outro integrante, do qual só fui me lembrar recentemente. Conversando com Marden, meu irmão mais novo, ele se saiu com essa pergunta: “- E aquele cara, que abria um coco apenas com um golpe do dedo indicador?”.

Poxa vida! Era o nosso técnico, Ives Mayal. O moço era carateca. A espessura de seus dedos era assustadora, mas essa história de abrir coco era dita por meus colegas. Ele apenas sorria. Logo a mim, que vivia assistindo filmes de Bruce Lee, no Cine Brasília, lá em Bom Conselho. Fiquei encantado com tudo aquilo. Ah, a ingenuidade juvenil!

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Seguimos para Natal. Lá, resolveu-se que Flávio jogaria no segundo tabuleiro. Uma estratégia comum, mas que também tem seus riscos. O jogador mais forte em tabuleiro inferior, para amealhar uma maior quantidade de pontos; e o jogador que ocuparia o seu lugar, ficaria encarregado de arrancar uns pontinhos dos jogadores mais fortes das outras equipes. E lá fui eu, ocupar o primeiro tabuleiro.

Concluída a penúltima rodada, meu desempenho era de uma vitória, dois empates e duas derrotas. Estava razoável, em face da estratégia traçada pela equipe.

Àquela altura, o Estado de São Paulo liderava a competição com folga. A memória me falha em relação a quem ocupava o segundo lugar. Mas a disputa pelo terceiro estava acirrada. A Paraíba estava apenas meio ponto à frente de Pernambuco.

Corremos para o alojamento e, avidamente, nos pusemos a fazer os cálculos. Chegamos à conclusão de que, se conseguíssemos tirar aquela desvantagem, a medalha de bronze seria nossa, pois estávamos melhor nos critérios de desempate.

E assim seguiu. A Paraíba enfrentaria o Rio de Janeiro, e Pernambuco tinha o Rio Grande do Norte pela frente. Joguei contra Maurício Bezerra Noronha. 

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Maurício Bezerra Noronha x Marcello Urquiza

Natal (RN) – 13/07/1978

https://share.chessbase.com/SharedGames/share/?p=XR6fInEPlmIPGkEBDXbgrSUdrZNh4c9irjJ5M8qXPpurqV91/dGvbtW1yN4Wre7F

1.Cf3 d5 2.c4 Cf6 3.b3 Bf5 4.g3 e6 5.Bb2 h6 6.Bg2 Be7 7.0-0 Cbd7 8.Te1 0-0 9.d4 Ce4 10.Cfd2 Cdf6 11.Ce4 Ce4 12.f3 Cf6 13.e4 dxe4 14.fxe4 Bg4 15.Dc1 c6 16.Df4 Bh5 17.a3 Db6 18.De3 Cg4 19.Dc3

Acredito que, mesmo se você der apenas uma olhada rápida nessa posição, verá que ela tem um “cheirinho de tática”. A diagonal g1-a7 é débil, o peão de “d4” está sujeito a uma cravada e, por conseguinte, o rei branco está numa posição perigosa.

Recordo que percebi essa situação, mas não encontrei um jeito de explorá-la. Não vou me recriminar por isso, mas havia um caminho. Veja o que Dr. Fritz indicou:

19.... e5 20.b4 c5! (Veja que lance magnífico. O peão de “d” continua paralisado). Por exemplo:

- Se 21.d5 ou dxe5, então cxb4+, ganhando a dama.

- Se 21.dxc5 ou bxc5, 21.... Bc5, seguido de Dc5+, com posição ganhadora.

19.... Tad8 20.c5 Dc7 21.d5 Bf6 22.e5 Be5 23.Te5 De5 24.De5 Ce5 25.Be5


A posição só me oferece duas alternativas: exd5 ou cxd5. Em ambos os casos, as pretas ficariam com torre e dois peões por duas peças menores.

Com 25.... exd5, as pretas ficariam com uma posição sem debilidades e com a coluna “e” para suas torres. Seria uma posição muito difícil de ganhar, mas também muito difícil de perder. Lembrando que meio ponto ajudaria bastante a equipe.

Mas avaliei que os dois peões centrais passados me daria chance de vitória. Se não me recriminei antes, foi porque entendei que o lance 20.... c5 era muito difícil. Estava acima da minha capacidade técnica.

Mas agora, não! Ter optado por 25.... cxd5 foi uma capivarada grotesca. Veja o porquê: permite a formação de uma maioria de peões na ala da dama para as brancas, meus peões centrais eram facilmente bloqueáveis e, para piorar, minhas torres não ficaram com uma coluna sequer para trabalhar.  

No afã juvenil de sempre querer ganhar, eu renunciei a qualquer jogo ativo. Se bem que já não sou tão jovem, mas esse ímpeto ainda persevera.

25.... cxd5 26.Bd6 Tfe8

Teria sido melhor 26.... Td6, mas aí seria reconhecer que 25.... cxd5 foi um erro. Ainda era muito cedo para perceber.

27.Cc3 a6 28.Ca4 Bg6 29.Cc3 Bc2 30.b4 f5 31.Ta2 Be4 32.Ce4 fxe4 33.Rf2


À essa altura, as demais partidas tinham terminado ou estavam em vias de acabar. E tudo indicava que a diferença de meio ponto para a Paraíba se manteria. Ou seja, a responsabilidade pela conquista da medalha caiu no meu colo. Bastaria o empate.

Então, como você jogaria esse posição, caso estivesse com as pretas? As brancas estão com o jogo bem melhor, sem dúvidas.

Como não tinha nenhuma possibilidade de jogo ativo, creio que a melhor opção seria fazer jogadas de espera. Aguardar as ações das brancas. E contar com algum erro, a fim de salvar a partida.

Mas a impaciência, o ímpeto que querer fazer alguma coisa, me fez cometer a última bobagem.

33.... e5 34.Td2 d4 35.Be4 b6 36.Bg6 Te6 37.Be4 bxc5 38.bxc5 Tf6+ 39.Re2 Te8 40.Tb2 Rf7 41.Tb6 a5 42.Ta6...

O restante da partida carece de interesse. Foi só esperneio. Abandonei no 49º lance.

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Partida terminada, fui ao terraço, que era anexo ao salão de jogos, e me pus a olhar, não para belas vistas da capital potiguar, mas para o vazio. Estava a ruminar aquela sofrida derrota e a oportunidade perdida de ficar no pódio de uma competição de nível nacional.

Então, Ives se aproximou e deu um golpe de misericórdia naquele lutador, que já estava cambaleante:

“ - Você viu o tamanho das medalhas?”

Aí, aí, aí... isso não se faz. Elas eram maravilhosas! Tinham o diâmetro de um pires. Fui à lona. Só consegui dizer:

“ - É. Eu também queria uma.”



8 comentários:

  1. História inspiradora e ótimas análises, parabéns!

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    1. Também temho algumas páginas da coluna de xadrez da revista Manchete,já tenho elas a mais de 40 anos.

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  2. “Em 1978 na cidade de Natal, aconteceram os jogos Escolares Brasileiros. A equipe da Paraíba foi composta por: Francisco Cavalcanti , Francisco Nogueira ,Marcos Valério e Virgílio Villar. Conquistamos o bronze, perdemos a prata para o RS nos milésimos, o ouro ficou para SP. Lembro que Gilberto Milos, Darcy Lima, Mena Barreto, Roberto Andrade, Flávio Daher, Cleobis Nogueira, Daniel Góis e o nosso Marcelo Urquiza participaram deste JEBs, que foi considerado como um dos mais fortes certames por equipes.“
    Comentário que o MF Francisco Cavalcanti fez em um grupo do WhatsApp. Ressalvando que sou o “estranho no ninho” dessa relação.

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  3. Olá Urquiza!
    Apesar de na época eu ter 19 anos a FPX me escalou para ser técnico de São Paulo nestes JEBS. Lembro que a equipe de SP, além de Milos, tinha MF Cesar Soares, Marcelo Fiorino e acho que Sergio Pontremolez (tenhod neste último). SP ganhou todos os matchs. Grande geração aquela, dois futuros GMs estavam ali, Darcy Lima e Gilberto Milos!

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  4. Olá, achei pela internet seu blog. Você tem notícias do Flávio Daher? Ensinou-me a quase 30 anos. Eu e o Alipio Agra formávamos o time principal da menina do AABB, se tiver por favor me retornem.

    queiroz.ortopedia@gmail.com

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