sexta-feira, 10 de julho de 2020

Desventuras de um Capivara – Morrendo na praia

O voo do capivara não é muito frequente. Ao contrário e , tal qual a vaca, o mais comum é ele ir para o brejo. Então, voltemos às desventuras.
Esse negócio de morrer na praia é cruel! A pessoa nada desesperadamente para alcançar a terra firme e, quando chega, tem um "piripaque" e morre. Triste. Isso acontece muito em finais de partidas. Depois de uma luta intensa, já prestes a alcançar o objetivo, damos aquela "capivarada" que nos faz perder a partida ou deixar escapar uma vitória certa. É bem frustrante, como você deve saber. 
O principal motivo desses erros é a carência técnica. Por isso, a importância de estudar essa fase do jogo. Mas outros fatores podem influenciar, tais como o apuro de tempo e o psicológico. 
Tenho dois exemplos para mostrar.
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O primeiro ocorreu na partida jogada contra o mestre alagoano, Jonathas Magalhães, no Nordestão 2019, em Recife. 
Na última rodada, ela era a única ainda em andamento. Já não tínhamos muitas ambições na competição, mas o espírito de luta estava presente. Jonathas buscando a vitória, pois tinha vantagem; e eu, tentando o empate. 
Ademais disso, o jogo tinha um ingrediente que mobilizou a atenção dos demais jogadores: o resultado dele definiria o campeão do torneio. O MF Diogo Guimarães, da Bahia, e o MF Luismar Brito, da Paraíba, estavam empatados com 5,5 pontos, cada. O empate daria o título a Diogo. A vitória de Jonathas beneficiaria Luismar. 
A foto abaixo, do MN Joaquim de Deus, demonstra o interesse que a partida despertou.


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Mas, deixemos de lero-lero, e vamos ao que interessa. Perdi uma qualidade no início do jogo, porém obtive alguma iniciativa, a qual me fez alcançar a posição do diagrama abaixo. 


Observem que o rei branco não pode jogar, pois precisa defender o peão de “b3”, e a torre, por si só, não consegue se opor ao domínio central que as peças pretas exercem. Jonathas até tentou manobrá-la, mas não obteve resultado. Acompanhem.
Atenção! Atendendo sugestão do Mestre Arthur Olinto, a partir dessa edição, disponibilizaremos "links" para que  as partidas possam ser vistas através do celular ou computador.
60.Th8 Re3 61.Td8 Re2 62.Td5 Re3 63.Td3 Re2 64.Th3 Cd6 65.Th5 Ce4 66.Th3 Cd6 67.Th4 Re3 68.Th5 Ce4 69.Te5 Rd4 70.Te8 Re3 71.Te7 Rd4 72.Td7 Re3 73.Td1 Re2 74.Td3 Cf2
“E tudo como dantes no quartel de Abrantes”, pensei. Se 75.Td2 Re3, e nada mudaria. Joguei Cf2, como poderia ter jogado Cf6 ou Cg5, que não faria diferença, no meu entender.
Mas, percebendo que a partida estava se encaminhando para o empate, Jonathas tentou uma última cartada. Ele deve ter pensado: “Ego revolvet eam”(*).
75.Td2 Re3 76.Tf2
Esse lance caiu como uma bomba para mim. Não o tinha considerado, e, naquele momento, só conseguia ver que, após Rd3, as brancas ganhariam. Meu estado de espírito estava abalado e, para completar, aquela capivara falou ao pé do meu ouvido: “Perdeu, cara! Perdeu”. Continuou.
76.... Rf2 77.Rd2
“Oi? Por que ele não jogou Rd3 direto? Aí tem coisa!”, estranhei. Mas, antes que eu pudesse aprofundar a investigação sobre as razões desse lance, a capivara interveio e, num complô maquiavélico com meu psicológico abatido, repetiu aquela ladainha: “Perdeu! Perdeu! Tem jeito não”. Ah, capivara! Ainda ei de te exorcizar. 

Como desafio, proponho que responda as seguintes questões:
1- Por que as brancas jogaram Rd2, ao invés de Rd3?
2- A partida estava mesmo perdida para as pretas?
Continuou.
77.... Rf3 78.Rd3 Rf4 79.Rc4 Re5 80.Rc5 Re6 81.Rb4 Rd6 82.Rb5 Rc7 83.Ra6 Rb8 84.b4 Ra8 85.b5 Pretas abandonam
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Vamos ao segundo exemplo. Foi no Floripa Chess Open 2020. Enfrentei o fortíssimo Eduardo Silvio, jogador com 2300 de rating na época. Estranhei porque ele não possuía o título de MF. Respondeu que esteve afastado do xadrez, e que não o tinha reivindicado. 
Após um jogo impreciso do meu adversário, e de muita paciência de minha parte, chegamos à posição do diagrama. Jogam as brancas. 
Mais um desafio: 
3- Como as brancas devem jogar para ganhar?
Uma dica: eu tinha acabado de ler o livro “Los 100 finales que hay que saber”, de Jesús de la Villa. No capítulo de finais de peões, ele apresenta uma manobra típica, que também se aplica a esse caso. Porém, como não cheguei a internalizar esse conhecimento, teria de descobrir a solução no tabuleiro. Mas, com pouco tempo para pensar, e já impaciente, meio que renunciei à vitória. Joguei:
61.Tg8 Th7 62.Tg7 Th4 63.Tf7 Rc6 64.Tg7 Tf4 65. Empate
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Respostas dos desafios.
1- Qual foi a razão da jogada Rd2? As pretas possuíam uma rota alternativa para seu rei. Vejam: se 77.Rd3, então 77.... Re1 78.Rc4 Rd2 79.Rc5 Rc3, e as pretas ganhariam. 
2- A partida ficou perdida depois de Rd2? Não. Bastaria manter a casa “e1” ao alcance do rei. Portanto, 77.... Rf1!. As brancas seriam obrigadas a jogar 78.Rd1, e a partida estaria empatada. 
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3- Como ganhar nessa posição? Deem mais uma vista no diagrama. 
Vejam que o rei preto não pode sair da 7ª fila, sob pena de levar um xeque. A torre, por sua vez, tem de ficar na coluna “h”, que é para manter o peão de “h7” sob vigilância. 
Então, para ganhar, o rei branco precisaria apoiar a sua torre. E como passar pelo bloqueio imposto pela torre preta? Esse é o “X” da questão. 
Notem que, se a vez de jogar fosse das negras, elas teriam de deslocar sua torre, abrindo o caminho para o rei branco. Eis a solução: ceder a vez de jogar para o segundo jogador! É quando entra a triangulação, manobra típica em finais de peões. Vejam:
61.Rg2 Th6 62.Rf3 (ameaçando Rg4) 62.... Th4 63.Rg3 (Pronto! Agora as pretas teriam de jogar.) 63.... Th1 64.Rg4 Th2 (64.... Tg1 seria a mesma coisa) 65.Rg5 Th1 66.Tg8 Th7 67.Tg7 Th1 68.Tf7 Rc6 69.Te7 e o rei branco iria a f8, ganhando através da posição de Lucena.
Mas, e se 62.... Tf6, ao invés de Th4? Então, 63.Rg4 Th6 64.Rg5 Th1 65.Rf6 Tf1 66.Rg7 Tg1 67.Rf7 Tf1 68.Rg6 Tg1 69.Rf5 Tf1 70.Rg4 Tg1 71.Rf3 Th1 72.Ta7, ganhando.
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(*) Nota do tradutor - “Ego revolvet eam”. Do Latim, “vou enrolá-lo”.

2 comentários:

  1. Dois finais bem instrutivos, Urquiza. Os erros em finais quase sempre são erros de cálculo e acontecem quando temos pouco tempo no relógio ou estamos já cansados da partida. Tenacidade para jogos longos pode ser adquirida com a prática e o estudo das próprias partidas. Parabéns pelo aetigo!

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  2. Muito obrigado, Mestre Resende. Seus comentários me deixam lisonjeado.
    Marcello

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