Era a
9ª rodada do Continental 2019, lá em São Paulo. Meu adversário seria um jovem
talento paulista, o Enzo Federzoni. Pouco antes do início da partida, a direção
do torneio anunciou que, quem estivesse com 50% dos pontos a partir daquela
rodada, faria jus ao título de Mestre
Nacional.
Oba! Eu estava com 4 pontos. Um
empate já me daria o título. Fiz cara de “pidão” para o Enzo, mas ele fez cara
de paisagem. Então vamos jogar. Fazer o quê?
Marcello Urquiza x
Enzo Federzoni
Continental –
11/07/2019
1.e4 c5
2.Cf3 d6 3.d4
cxd4 4.Dd4 Cc6
5.Bb5 Bd7 6.Bc6
Bc6 7.Cc3 e5
8.Dd3 h6 9.Cd2
Cf6 10.Cc4 b5
11.Ce3 Be7 12.Cf5
g6 13.Ce7 De7
14.0-0 b4 15.Cd5
Bd5 16.exd5 Db7
17.Td1 Rf8 18.c4
bxc 19.bxc3 Rg7
20.Ba3 Dc7 21.Tac1
Cd7 22.c4 Cc5
23.De3 Tac8 24.f4
e4 25.Bb2 f6
Meu
próximo lance implicaria no sacrifício de uma qualidade. Após uns 20 minutos de
indecisão, tomei coragem e resolvi seguir o plano.
26.g4 Cd3
27.Td3 exd3 28.g5
The8 29.Bf6 Rh7
Dr. Fritz, o que acha desse
lance? “- É duvidoso. Melhor teria sido
29. … - Rf7”. Paradoxal, né? As brancas têm um ataque que aparenta ser
promissor. Por que então colocar o rei numa casa onde, em tese,
ficaria mais exposto? Porque em f7 ele
estaria mais próximo do centro no final que se aproxima. Por outro lado, em h7
ele estará sujeito a sérias ameaças,
caso a torrre branca alcance a 7ª ou 8ª filas.
30.
Dd3 Dd7
31.h3 h5 32.Rg2
Df5 33. Df5 gxf5
34.Rf3 Te4?
Sem perceber as possibilidades
táticas da posição, as pretas vão avidamente em busca do peão de c4.
34.... Tc5=.
35.
c5!
As pretas não podem tomar o peão “c”
em hipótese nenhuma, pois o seu colega
em “d” passaria incólume. Vou deixar a confirmação dessa afirmativa a seu
cargo, caro leitor. Mas meu adversário chegou à mesma conclusão e preferiu
jogar:
35.... Ta4
A posição resultante é a razão dessa
postagem. (Diagrama abaixo).
O que você faria agora? Pensei em
jogar c6, que é um lance muito bom. Mas Dr.Fritz está me dizendo que existem
opções ainda melhores. Você deve estar se perguntando: “Oxente, então o que foi que assucedeu?”. Ok.
Vou tentar fazer uma avaliação da posição depois de c6. Depois eu conto o que
se passou.
Kasparov disse que há 03 dimensões
no xadrez: a material, o tempo e a qualidade. Vejamos:
- na
dimensão material, as pretas, caso tomassem o peão de a2, teria torre (5) por
bispo e peão (3+1). Em termos absolutos, teriam vantagem material.
- e
na dimensão qualidade? A torre preta de c8 vale mais do que o bispo branco? O
rei preto está melhor posicionado que o
branco? As pretas têm um peão com força equivalente ao do peão “c”? Não,
não e não. A única peça preta ativa é a torre em a4, que sozinha não pode fazer
nada. A torre branca logo invadirá as
linhas 7 ou 8, com ameaças terríveis.
Agora, conto o que aconteceu.
Enquanto fazia essas ponderações, vislumbrei outra possibilidade. E se, ao
invés de 36.c6, eu jogasse 36.cxd6? Depois de 36.... Tc1
37. d7, eu teria um peão a um passo de ser coroado, apoiado pelo bispo e
protegido pelo peão de d5. Meu rei receberia alguns xeques, mas logo se
abrigaria em d6. Tranquilo!
Com 02 opções, meu problema era
decidir como ganhar. De forma simples ou
bonita? Aquela capivara da primeira
postagem logo se assanhou e soprou no meu ouvido: “- Se é para ganhar, que
ganhe bonito! Você vai receber o prêmio de beleza do torneio”. Arregalei os
olhos! Então:
36.cxd6 Tc1
37.d7
Pronto. Mas... e a dimensão
tempo? Essa dimensão se manifesta quando um dos lados tem alguma vantagem
transitória que precisa ser materializada antes que o adversário consiga se
recompor. No caso presente, terei tempo de coroar meu peão?
Pois bem, tomei uma decisão baseada
em uma avaliação geral da posição. Não fiz um mísero cálculo sequer.
37.... Ta3
38.Re2 Ta2 39.Re3
Te1 40.Rd4 Td1
41.Re5 Te2
Então eu me dei conta da besteira
que fiz. 42.Rd6 não serve. 42.Rd6
Ted2 43.Rc7 Td5
44.d8 =D Td8 45.Bd8
Td8 46.Rd8 a5.
Com o orgulho ferido e vendo meu
título de Mestre Nacional descer ralo
abaixo, joguei mais uns lances antes de abandonar.
42.Rf5 Td5
43.Be5 Td7 44.Re6
Td8 45.Rf7 Te5
46.g6 Rh6 47.Brancas abandonam.
-x-x-x-x-
Vida que segue. Em janeiro/2020,
fui jogar o Floripa Chess Open. Lá pelas tantas, enfrentei um adversário, que
depois me procurou:
“-Tenho
um amigo chamado Enzo”.
“-Enzo
Federzoni? Conheço. Joguei como ele lá no Continental”.
Aí ele me fez uma revelação:
“-Ele
disse que você pôs as mãos na cabeça e balbuciou baixinho: Marcello, Marcello,
Marcello...”
Hã?? Não lembrava! Encabulado,
tentei me justificar:
“-Fiz
um sacrifício errado e perdi uma partida ganha...”
Depois disso, sempre que nos
encontrávamos no salão de jogos, lá vinha ele:
“-Marcello,
Marcello, Marcello...”
“-Marcello,
Marcello, Marcello...”
Putz! Desgraça pouca é bobagem!