Em outro dia contei sobre como abandonei o xadrez. Agora, chegou a vez de falar
sobre a minha volta.
“ - Ah! Já
sei! Você infartou e o doutor lhe recomendou atividades
contemplativas.” Pondera um leitor mais apressado.
Deus me livre! Mesmo porque o xadrez competitivo não é muito adequado para
quem tem o coração fraco. A questão do infarto será abordada no
momento oportuno. Falemos primeiro sobre o retorno
aos tabuleiros.
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Foi assim: à
medida em que se aproximava o momento de me aposentar, eu avaliava a
possibilidade de voltar a jogar. Então, quando finalmente “pendurei
a chuteiras”, resolvi que … não voltaria! Temia uma recaída,
pois, na juventude, estive “um tanto obcecado” pelo jogo.
Então fui
procurar o que fazer para tentar afastar aquela tentação.
Fiz um curso
de cervejeiro caseiro. Agora sim! Seria um mestre, só que um Mestre
Cervejeiro...
Comprei um
violão e um cavaquinho. Ganhei um alaúde e herdei um violino... Não
teria como escapar! Finalmente aprenderia a tocar um instrumento
musical.
E para não
ficar vivendo só de brisa, fui trabalhar na empresa de minha filha.
Passaram-se
dois anos, quando, em 2017, surgiu a oportunidade de comprar um
pequeno apartamento na agradabilíssima João Pessoa. Doravante iria
dividir meu tempo entre a vida pacata em Macaparana, no interior de
Pernambuco, e a capital da Paraíba. Praia, barzinhos, shoppings,
cinema, espetáculos musicais... uma maravilha!
Tudo ia bem,
até que um dia bateu a curiosidade de saber como andava o xadrez em
Jampa. Fui lá no Google.
“ - Xadrez
João Pessoa”.
Ele
respondeu:
“ -
Inscrições abertas para o Memorial Bobby Fischer...”
Eita! A
tentação ressurgiu com força total. Dessa vez, não tive forças
para resistir. “Não faria mal participar, afinal o xadrez também
poderia fazer parte do pacote de diversões que a cidade grande
oferecia”. Essa foi a desculpa que encontrei para me justificar.
“Leve
peças e relógio”, alertava o regulamento do torneio. Comprei um
jogo de peças. E lá fui eu, na primeira rodada, com as mãos frias,
ansiedade nas alturas, peças novinhas, um relógio analógico
Cronos do tamanho de um tijolo e vagas lembranças de três décadas
atrás.
Reconheço
que sou um capivara, mas de uma categoria muito especial. Como você
pode perceber, sou um capivara pré-histórico! Um Neochoerus
sulcidens,
o
ancestral dos capivaras modernos. Pré-engine, pré-internet,
pré-sistema London, pré-Carlsen...
E foi assim
que Caíssa, numa missão arqueológica, me resgatou.
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O autor enfrentando o MF Diogo Guimarães na 4ª rodada
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Vou me
abster de publicar a partida completa, para que possamos ir direto ao
ponto que nos interessa: o infarto.
Depois de
duas vitórias seguidas (!), na terceira rodada fui emparceirado
com Mário Fiaes, forte jogador da Bahia.
Marcello
Urquiza x Mário Henrique Fiaes
IX Memorial
Bobby Fischer.
João Pessoa
– 17/03/2018
Link da partida:
https://share.chessbase.com/SharedGames/share/?p=sYc7CU/N0GpjxPmI5eREOw4bfhWz8PW08TMjIquXpbA9jc9cCbd/FvrNctPpqxGU
Depois de
algumas escaramuças no centro do tabuleiro, a partida chegou à
posição do diagrama. Dr. Fritz avalia que as chances estavam
iguais.
32.Be2
As brancas
buscavam reagrupar suas forças.
32....
Tc3 33.Bd3 Cd7 34.Te2
Agora, ameaçavam consolidar a posição, bloqueando a estrutura de peões das
negras.
34....
Dd6?
Mas as
pretas decidiram fazer uma defesa passiva do peão e, para piorar,
escolheram a pior opção.
Menos mal
teria sido 34.... Tc6. Mas daria a chance de as brancas bloquearem o
centro. Por exemplo: 34..... Tc6 35.Dg1 Te7 36.Dd4 Td6 37.Tbe1,
com jogo um pouco melhor para as brancas.
Então
34.... e5 era imprescindível, com igualdade. Uma possível linha
seria: 34.... e5 35.fxe5 Ce5 36.b5 Cd3 37.Te8+ Tf8 38.Tf8+
Rf8 39.cxd3 axb5 40.Df3+ Df7 41.Df7+ Rf7 42.Tb5 Td3 43.Tb7+
, resultando em um final de torres empatado.
35.De1
Ataque
duplo.
35....
Tc6 36.b5 axb5 37.Bb5 Tc5?
Outro erro,
dando oportunidade para um rápido desenlace. Com 37.... Tc8, para
defender a 8ª linha, as pretas poderiam oferecer maior resistência,
embora a posição ainda fosse desesperadora.
38.Te6
Dc7 39.Bd7 Dd7 40.Te8+ Tf8 41.Te7 Dg4 42.Tbb7 Tc2
Seja
sincero, prezado leitor, você não acha que um dos momentos mais
prazerosos do xadrez é quando damos um lance inesperado e nosso
adversário toma aquele susto?
43.De6+!
Mas
não foi aqui que meu oponente se assustou, embora ele também não
esperasse esse lance. Percebi sua expressão de alívio. Creio que
ele temia 43.Tg7+ Dg7 44.Tg7+ Rg7, com vantagem decisiva para as
brancas.
43....
De6 44.Tg7+
Mate em dois
lances! Foi aqui. Meu adversário teve um baita sobressalto. Não
tinha previsto esse lance. Mas, passado o impacto inicial, ele não
se fez de rogado e continuou a partida...
44....
Rh8 45.Th7+ Rg8 46.Tbg7++
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Jogo
terminado, um dos integrantes da delegação baiana se aproximou e
disse:
“ - Olha,
seu adversário tem essa postura. Ele vai até o fim. Diz que o
oponente pode ter um infarto, aí então ele ganharia a partida pelo
tempo.”
Cruz credo!!
Ainda bem que só soube disso depois da rodada. Vai que eu estivesse
em um dia sugestionável... olha a bronca!
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Sobre o que
eu vinha fazendo antes de voltar a jogar? Bem, pedi demissão à
minha filha; há mais de um ano que não faço cerveja; e o violão
está ali num canto, empoeirando. Todos os dias ele me lança um
olhar melancólico.
“ - Ah!
Então você teve uma recaída, e voltou a ficar obcecado pelo
xadrez.”
Não, de
forma alguma. Estou tendo a oportunidade de fazer o que gosto. E isso
é um grande privilégio.