sábado, 5 de agosto de 2017

A Jornada de Yifan

Por Rewbenio Frota

Muitas histórias famosas da literatura e cinema seguem a famosa estrutura da ‘Jornada do Herói’, segundo a qual o protagonista deixa seu mundo seguro e conhecido, chamado a participar duma aventura irresistível, e segue um percurso cheio de percalços e surpresas. Nesta jornada, encontra a figura dum mestre (de carne e osso ou sobrenatural) que o treina, ensina-o a ter confiança em si e o prepara para vencer um grande desafio iminente, que se revelará uma questão de vida ou morte. Uma vez vencido o desafio, nosso herói retorna ao local de origem aclamado, realizado, pleno de autoconfiança.

Esse mito do herói veio-me à mente quando soube da espetacular vitória da GM Yifan Hou no prestigioso Torneio de Biel, superando nomes como Pentala Harikrishma, David Navara e Etienne Bacrot.

Não parece haver relação clara, mas eu explico: não faz muito tempo, Yifan decidiu sair de seu território seguro e conhecido, o xadrez feminino, e decidiu sofrer as dificuldades que se impõem na luta por adentrar ao clube dos dez melhores do mundo entre homens e mulheres, ser candidata ao título mundial absoluto e ultrapassar a lendária Judit Polgar como a maior jogadora da história do xadrez.

A jornada do herói, mesmo na fase em que ele já encontrou seu mentor, não é livre de reveses que tornam o caminho difícil e nada linear. No caso de Yifan, temos o exemplo de seus desastrosos desempenho e postura no torneio de Gibraltar no início do ano, quando, ávida por colecionar escalpos de grandes mestres do sexo oposto, não ficou nada contente em enfrentar praticamente apenas suas velhas adversárias do circuito feminino. Na última rodada, contra um grande mestre do sexo masculino, ela entregou a partida de forma deselegante, por pouco não se permitindo levar o ‘mate do louco’.

Ignoro quem represente a figura do mestre da ex-campeã mundial feminina, mas este deve ter usado de sábias máximas de Confúcio, de duros exercícios de análise dos próprios erros, de transcendentais exercícios de tática avançada, além de focar na difícil arte concentrar-se no tabuleiro e não em quem se encontra do outro lado. Parece que tudo isso tem sido feito, pois agora, com essa nova dimensão que tenta dar ao seu xadrez, ela começa a colher os frutos mais apetitosos.

Apesar do doce triunfo, Biel certamente ainda não é o grande desafio “de vida ou morte” ao qual Yifan pretende enfrentar-se em sua jornada. Basta lembrarmos que, torneios como este, recheados de marmanjos da elite, Judit venceu vários em sua carreira.

Sigo torcendo que ela consiga revelar-se a heroína que pretende ser, e retornar triunfante como exemplo a ser seguido por tantas outras jogadoras, atuais e vindouras. Os ganhos para o xadrez seriam enormes. Um exemplo assim, como Judit Polgar e suas irmãs antes de Yifan, pode alavancar a presença feminina em torneios gerais. Assim, quem sabe, um dia não haverá mais sentido na separação entre ‘xadrez absoluto’ e ‘xadrez feminino’, que tem servido apenas para dividir os praticantes dum esporte cujo lema internacional tem sido Gens una Sumus – somos uma só família.

5 comentários:

  1. Parabéns ao Mestre Frota! Um artigo a altura do prestígio da chinesinha!

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  2. Excelente texto, que revela erudição em áreas distintas da história/teoria do xadrez. Parabéns ao autor e ao Blog por leva-lo ao conhecimento do público.

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  3. Obrigado amigos, é uma honra poder contribuir aqui com os amigos do blog RC!

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  4. Mais um texto primoroso, Rewbenio! E, desta vez, tem um toque mais que especial por reconhecer o trabalho dessa que tem se revelado uma verdadeira guerreira! Como você bem ilustrou, é realmente uma "jornada de herói" (heroína, no caso) vencer em um universo ainda dominado por homens.
    Katiusha de Moraes

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  5. Rewbenio, continue com o xadrez na mente e uma caneta nas mãos!

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