domingo, 22 de março de 2020

Desventuras de um Capivara II – Fui querer ganhar bonito...

Por Marcello Urquiza


Era a 9ª rodada do Continental 2019, lá em São Paulo. Meu adversário seria um jovem talento paulista, o Enzo Federzoni. Pouco antes do início da partida, a direção do torneio anunciou que, quem estivesse com 50% dos pontos a partir daquela rodada,  faria jus ao título de Mestre Nacional.

Oba! Eu estava com 4 pontos. Um empate já me daria o título. Fiz cara de “pidão” para o Enzo, mas ele fez cara de paisagem. Então vamos jogar. Fazer o quê?

Marcello Urquiza   x   Enzo Federzoni
Continental – 11/07/2019

1.e4  c5   2.Cf3  d6   3.d4  cxd4   4.Dd4  Cc6   5.Bb5  Bd7   6.Bc6  Bc6  7.Cc3  e5  8.Dd3  h6  9.Cd2  Cf6   10.Cc4  b5   11.Ce3  Be7   12.Cf5  g6   13.Ce7  De7   14.0-0  b4   15.Cd5  Bd5  16.exd5  Db7  17.Td1  Rf8  18.c4  bxc   19.bxc3  Rg7   20.Ba3  Dc7   21.Tac1  Cd7   22.c4  Cc5  23.De3  Tac8  24.f4  e4  25.Bb2  f6 
         
Meu próximo lance implicaria no sacrifício de uma qualidade. Após uns 20 minutos de indecisão, tomei coragem e resolvi seguir o plano.

26.g4  Cd3  27.Td3  exd3  28.g5  The8  29.Bf6  Rh7
           
Dr. Fritz, o que acha desse lance?  “- É duvidoso. Melhor teria sido 29. … - Rf7”. Paradoxal, né? As brancas têm um ataque que aparenta ser promissor. Por que  então  colocar o rei numa casa onde, em tese, ficaria mais exposto?  Porque em f7 ele estaria mais próximo do centro no final que se aproxima. Por outro lado, em h7 ele estará sujeito a sérias ameaças,  caso a torrre branca alcance a 7ª ou 8ª filas.

30. Dd3  Dd7  31.h3  h5  32.Rg2  Df5  33. Df5  gxf5  34.Rf3  Te4?

Sem perceber as possibilidades táticas da posição, as pretas vão avidamente em busca do peão de c4. 34....  Tc5=.

35. c5!
            
As pretas não podem tomar o peão “c” em  hipótese nenhuma, pois o seu colega em “d” passaria incólume. Vou deixar a confirmação dessa afirmativa a seu cargo, caro leitor. Mas meu adversário chegou à mesma conclusão e preferiu jogar:

35....  Ta4

A posição resultante é a razão dessa postagem. (Diagrama abaixo).





O que você faria agora? Pensei em jogar c6, que é um lance muito bom. Mas Dr.Fritz está me dizendo que existem opções ainda melhores. Você deve estar se perguntando:  “Oxente, então o que foi que assucedeu?”. Ok. Vou tentar fazer uma avaliação da posição depois de c6. Depois eu conto o que se passou. 

Kasparov disse que há 03 dimensões no xadrez: a material, o tempo e a qualidade. Vejamos:

- na dimensão material, as pretas, caso tomassem o peão de a2, teria torre (5) por bispo e peão (3+1). Em termos absolutos, teriam vantagem material.

- e na dimensão qualidade? A torre preta de c8 vale mais do que o bispo branco? O rei preto está melhor posicionado que o  branco? As pretas têm um peão com força equivalente ao do peão “c”? Não, não e não. A única peça preta ativa é a torre em a4, que sozinha não pode fazer nada.  A torre branca logo invadirá as linhas 7 ou 8, com ameaças terríveis.
            
Agora, conto o que aconteceu. Enquanto fazia essas ponderações, vislumbrei outra possibilidade. E se, ao invés de 36.c6,  eu jogasse 36.cxd6?  Depois de 36....  Tc1  37. d7, eu teria um peão a um passo de ser coroado, apoiado pelo bispo e protegido pelo peão de d5. Meu rei receberia alguns xeques, mas logo se abrigaria em d6. Tranquilo!
            
Com 02 opções, meu problema era decidir como ganhar. De  forma simples ou bonita?  Aquela capivara da primeira postagem logo se assanhou e soprou no meu ouvido: “- Se é para ganhar, que ganhe bonito! Você vai receber o prêmio de beleza do torneio”. Arregalei os olhos! Então:

36.cxd6  Tc1  37.d7

Pronto. Mas... e a dimensão tempo? Essa dimensão se manifesta quando um dos lados tem alguma vantagem transitória que precisa ser materializada antes que o adversário consiga se recompor. No caso presente, terei tempo de coroar meu peão?
            
Pois bem, tomei uma decisão baseada em uma avaliação geral da posição. Não fiz um mísero cálculo sequer.

37....  Ta3  38.Re2  Ta2  39.Re3  Te1  40.Rd4  Td1  41.Re5  Te2

Então eu me dei conta da besteira que fiz. 42.Rd6 não serve. 42.Rd6  Ted2  43.Rc7  Td5  44.d8 =D  Td8  45.Bd8  Td8  46.Rd8  a5.

Com o orgulho ferido e vendo meu título de Mestre Nacional descer  ralo abaixo, joguei mais uns lances antes de abandonar.

42.Rf5  Td5  43.Be5  Td7  44.Re6  Td8  45.Rf7  Te5  46.g6  Rh6  47.Brancas abandonam.

-x-x-x-x-

Vida que segue. Em janeiro/2020, fui jogar o Floripa Chess Open. Lá pelas tantas, enfrentei um adversário, que depois me procurou:

“-Tenho um amigo chamado Enzo”.

“-Enzo Federzoni? Conheço. Joguei como ele lá no Continental”.

Aí ele me fez uma revelação:

“-Ele disse que você pôs as mãos na cabeça e balbuciou baixinho: Marcello, Marcello, Marcello...”

Hã?? Não lembrava! Encabulado, tentei me justificar:

“-Fiz um sacrifício errado e perdi uma partida ganha...”      

Depois disso, sempre que nos encontrávamos no salão de jogos, lá vinha ele:

“-Marcello, Marcello, Marcello...”
“-Marcello, Marcello, Marcello...”
            
Putz! Desgraça pouca é bobagem!

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